O Café agora é nas Nuvens

Depois de quase 25 anos no ar, o Café Impresso agora é Café nas Nuvens.

Já há tempos eu implicava com essa ideia de “impresso”: há mais de dez anos que não leio um jornal ou revista impressos e até meus boletos já são digitais. Caixa de correio física nem abro mais.

Claro, sigo um bibliólatra – mas o livro, como todo objeto perfeito, é eterno. Enfim, o papel já tinha saído do meu cotidiano e o Café seguia Impresso.

Até que finalmente a transformação que eu vinha gestando há meses, veio à luz – e o Café mudou de nome e endereço: cafenasnuvens.com.br

Mas se você quiser ler ou reler as crônicas já publicadas aqui no Café Impresso, navegue pelos Arquivos mês a mês.

Manhã de chuva

Tudo mata ou tudo nutre, discute-se.
Mas de fato pouco há que me encante,
Constato sem lamento.

Pois contenta-me esse pouco
e dele extraio tanto
que se mais houvesse
Eu não daria conta.

A embriaguez discreta
De estar vivo me toma
quando falta-me a fé
e desespero:
ao buscar as causas
perco o sentido que
a própria vida é.

Mas me retomo e me esqueço
se contemplo o minucioso
espetáculo que me cerca:
há a chuva, o jazz que toca,
E Tao, a gata, largada na cadeira, sonha.

Como não ver Deus oculto e evidente
em tudo isso – e alegrar-se?
Alegrar-se por ter palavras pra dizê-lo,
criatura que vislumbra o mistério
e que um dia irá sabê-lo.

A realeza de Pelé

Nelson Rodrigues, Manchete Esportiva, 8 de março de 1958.

Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert] Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — ”Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!” De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao encalço ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau.

Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

Kim

Kim morreu no dia seis de novembro. Era dia de Todos os Santos, segundo a Liturgia. No Evangelho da missa desse dia, um domingo, leu-se o Sermão da Montanha. Nele há um trecho que é a cara do Kim: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.” Kim uma vez me disse, num momento difícil da vida dele: “Tudo é bom.” Só um puro de coração acredita nisso. E o Kim acreditava.

* * *

A morte de um amigo nos deixa menores. É como uma amputação. O amigo, no entanto, torna-se maior. Se antes era mais um fragmento de carne, hoje espraia-se indolente pela memória de todos. Só agora posso perceber sua presença nos presentes que deixava a cada vez que em minha casa se hospedava. Está nas fotos de múltiplos momentos que se espalham pela mesa, nos sonhos e nas memórias da “vida louca” que por um tempo partilhamos. Tudo isso sempre esteve aqui, mas era obscurecido pela voz ao alcance da mão pelos telefonemas quase diários ou pela viagem aérea sempre adiada. Hoje, aquilo que então eram restos, tornou-se imenso.

O nômade imóvel

Nasci no Largo do Machado.

Meu país é limitado ao Norte pela avenida Gomes Freire, onde, um pouco adiante, na Ordem do Carmo, minha mãe me deu à luz, numa noite de São Jorge. Ao Sul, minha fronteira é a linha incerta que separa Flamengo e Botafogo. A Oeste, me estendo até o Cosme Velho. E a Leste, há a Baía de Guanabara, onde o Atlântico descansa e se nutre.

Santa Teresa não me é um território estranho, mas, pelo resto do mundo, vago, nômade e estrangeiro.

O medo, a perplexidade e o êxtase foram companheiros inseparáveis de minha solidão silenciosa (mas não poucas vezes inconveniente e histriônica).

Nunca saí do meu país, ainda que o tenha reencontrado em todos os lugares. Nunca abandonei seus mitos e lendas, mas aos poucos percebi que são como máscaras que estão por toda parte.

Todos e ninguém, fiz da velhice minha capital. Do castelo da memória, às vezes penso divisar o que logo saberei. Não tenho pressa, porque tudo ainda me encanta. Caetânia é uma terra feliz.

Palavras ao vento

Geme o vento sob o céu límpido das últimas luzes do crepúsculo. Arma-se uma tempestade, pois já se vêem nuvens brevemente azuis vindo do poente. São seis da tarde e os sinos convidam para a missa, mas eu os ouço como se assinalassem a iminência do desastre: é minha sina ser assim doente da imaginação.

Quanto prazer isso já me deu – e quanta dor! Mas fez valer a vida e pagou o ridículo de existir. É o que basta. Invoquei meus santos quando tudo me faltava e penso ter visto Deus em toda parte. Não fui de todo bom, mas sempre tive mais medo de magoar do que de morrer. E se fui covarde – e fui – também soube ser heróico quando foi preciso.

Sigo-Te à distância e vou distribuindo aos pobres o que tenho – mas aos poucos.

Honrar o transitório

“Este é um livro raro! O exemplar que possuía me foi roubado em Brasilia. Levei 20 anos para conseguir um outro exemplar. Vitória! Rio de Janeiro, 24 de março de 2003”

Quase 20 anos depois, encontrei o livro na lixeira do meu prédio. Podia terminar aqui a crônica e deixar ao leitor a moral da história. Mas a vaidade me obriga a ser prolixo. Começo então pelo título: As Maravilhas da Matemática, volume 1, de Lancelot Hogben, edição segunda, maio de 1956. Capa dura, quase 800 páginas, um luxo que não resisti a mandar reencadernar. Para honrar o transitório como me ensinou Paloma.

O livro ganhou outra vida que, espero, acabe melhor que essa outra, terminada na lixeira. Até ia me por a especular como terá sido esse percurso, mas quase entristeci só de pensar. Livro novo, vida nova.

Enfim, por obra do acaso, onde sempre insisto em sentir o sussurro de algum anjo, ele veio dar em minhas mãos e coube a mim honrar o transitório – como gosto dessa expressão! – salvando o livro (que são seres tão espirituais como os anjos, afinal). Não custa imaginar que uma alma antes aflita tenha soltado um ufa! lá no céu, essa lufadinha de vento súbita que passou feito carícia e vai me servir de final para esta crônica.

Família

Passo em revista minha tropa de solitários de bom coração: The Misfits. Sinto uma inesperada vontade de chorar. Como uma pontada. Um grão de mostarda. É amor, não é tristeza. Construí uma família que não é segundo a carne, mas segundo o espírito.

De súbito, imaginei nós todos – eu, paloma, gui, pê, sofia, mat e daisy – na terra de meu pai – onde tudo começou. Vila Garcia. Trancoso. Portugal é meu pai e Fernando Pessoa. E o mar.

Voltaria de navio. Sozinho.

O amor. O mar.

La mer. Em sua profundeza o mar é mulher, a despeito de suas iras tão masculinas. Sou Pessoa, mas temperado por Baudelaire.

(Mas em português do Brazil me sinto tão Rubem, tão Maria…)

Laços espirituais. Não creio em reencarnações, mas creio na comunhão dos santos. No Corpo Místico cujo cimento e fermento é o amor.

Bendita

bendita luz azul que me deste
benditas plantas, benditas flores
benditas luzes de outras cores que me deste,

os muitos tons de laranja que se espalham em arranjos pela casa me envolvem num manto de luz sempre suave, sempre intensa: e assim me quero.

benditas as luzes todas que me deste, paloma
as flores
as cores
bendita é toda graça:

a extrema delicadeza é saber equilibrar-se