24 de abril de 2000
O chafariz e as flanélias

O chafariz é um estado de espírito. Você acorda chafariz - e nem sabe muito bem porquê. Pode ter sido um sonho que você teve à noite e já nem lembra mais; pode ser talvez o clímax de algum ciclo metabólico; pode ser uma secreta conjunção de planetas que só a você é favorável...

Não importa. O que importa é que há dias em que você acorda chafariz do mesmo modo como o chafariz acorda, de repente, no meio da praça: exultante. Jorro que sobe num jato de densa luz e se desfaz em gotas que tamborilam de volta no espelho d'água, o chafariz incessante dança a música que ele mesmo faz. De si e para si contente, o chafariz envolve a praça numa nuvem úmida de alegria - pois, se o chafariz é um estado de espírito, a alegria certamente é úmida...

Enfim, quando você acorda chafariz, tudo são flores.
E flor é o que não falta na praça, exuberando no sol de abril do Rio - que chamar de outono é quase dizer o contrário do que é de fato este veranico primaveril, tão luminoso e cálido.
Há flores em quantidade, nos quatro quiosques da praça. E, com se já não bastasse a sutilíssima variedade de cores e perfumes que elas oferecem, há o encanto sonoro de seus nomes. Sob o fundo verde das samambaias e cercados por uma corte de violetas e begônias, formam-se pares que parecem ter saltado de um conto de fadas: a Gloxínia e o Lisianto, o Crisântemo e a Prímola, o Amarilis e a Azaléia, o Ciclamem e a Gérbera, o Lírio e a Bromélia... Dançam no grande salão que é a praça ao som do chafariz orquestral, esses casais de sonho, Romeu e Julieta que deram certo, histórias de amor com final feliz...

E aí, meu anjo, não há como não lembrar de ti. Não há como não te imaginar uma gloxínia e a mim mesmo um lisianto que hoje acordou tão chafariz...

E que, diante da súbita e inexplicável urgência de te cobrir de flores, descobre que não haveria hoje nenhuma que te fizesse juz - ainda mais se você viesse naquele teu vestido branco de rendas do Pará.

Haveria então que inventá-la. Que nome teria a flor que eu te daria? Flanélia. Sim, eu viria com uma caixa vazia de flanélias só visíveis aos teus olhos gloxínios - que choram, líricos, só de ver uma criança pobre ou, bromélicos, se iluminam quando passa o bonde.
E te diria, "Repara, meu amor, o azul do perfume delas. Azul de mar e céu noturno... Sente a textura abstrata destas pétalas que se confudem com a tua pele. Sente.. São flanélias que inventei para ti - eternas e etéreas como soa ser o amor quando é feliz...".

E, me aproveitando do momento, pediria tua mão e convidaria a todos os viventes para o nosso crisantemo - que assim sem acento mais parece nome de sacramento. Um sacramento que tem como única regra e compromisso o verso de Vinícius: "Que seja infinito enquanto dure".

E então todos os casais felizes deste mundo viriam ter na Praça para celebrar seus crisantemos - abençoados que seriam por esse Deus-Chafariz que não é ordem nem necessidade, mas puro acaso e improviso.

E a Praça em festa se converteria numa espécie de Arca de Nóe sem desgraça de onde partíriamos, nós, os felizes, para inundar o mundo.