1 de maio de 2000
Significados óbvios

É uma tesourinha de unhas italiana, dessas de pontas curvas, feita em aço bom e reluzente. Quem a desenhou soube conciliar forma e função tão bem que, de cara, no primeiro olhar, se percebe que não se trata de uma tesourinha comum, dessas que se encontram por aí, mas de uma pequena obra de arte. A tesourinha - estou olhando para ela agora - tem estilo

A impressão se confirma quando a tomamos nas mãos e a encaixamos nos dedos para fazê-la cumprir o trabalho a que se destina: ela se adapta confortavelmente, não tem as formas arredondadas das tesourinhas comuns, mas é ligeiramente achatada, plana e os orifícios onde se encaixam os dedos também não são exatamente redondos, de modo que eles se ajustam sem folgas.

Será a última vez que usarei a tesourinha? Posso, quem sabe, comprar uma igual depois, visto que a minha ja está pedindo substituição faz tempo... Mas esta tesourinha sera a última vez que a usarei, certamente. Devo devolvê-la para sua dona que a deixou em minha casa há mais de um mês atrás.

Tenho que confessar que eu mesmo contribuí muito para esse esquecimento. Quando a vi largada sobre a pia do banheiro, eu a guardei no armário, em um gesto quase involuntário - se não estivesse carregado de óbvios significados: eu queria que você ficasse. Mais até: eu queria que você já fosse íntima o bastante para guardar sua tesourinha de unhas no armário do banheiro.

Um ato falho, enfim - não muito diferente de você sonhar que seu cachorro aparecera de repente em minha casa para ficar com você. O sonho e o gesto talvez quisessem dizer a mesma coisa, em sua linguagem ambígua e, quem sabe, por isso até mais verdadeira.

No entanto, quanta diferença entre um e outro... Há no sonho, no seu sonho, uma ausência de intenções que beira a inocência: a esperança de que tudo se revolveria se seu cãozinho estivesse aqui - assim, fácil e impossível.

Ao contrário, há no gesto, no meu gesto, muito de malícia: um ato cercado de aspas, um furto, afinal, mas "cheio de boas intenções". Não é à toa que se diz que "de bem intencionados o inferno está cheio".

Gastar o tempo do leitor analisando o gesto seria algo inútil, maçante e pretencioso. Além disso, certas coisas não se fazem em público... Basta-me reconhecer que há sempre uma diferença entre mim e aquele que quero acreditar que sou. Tão brutal é essa diferença às vezes, que chega a parecer insolúvel: mãos de ferro sob luvas de pelica.