19 de junho de 2000
Era Dia dos Namorados...

Estou escrevendo na quinta-feira, ainda sob o impacto da morte de Geísa. Estou a horas aqui, em frente à tela branca do monitor, escrevendo e reescrevendo parágrafos, mas tudo que eu consigo repetir é isso: "Era dia dos namorados". A vontade que tenho é ocupar todas as linhas com essa frase: "Era dia dos namorados". Não era dia de se morrer assim, tão desgraçadamente, tão por acaso, tão sem querer.

Pois, ninguém queria matar Geísa: nem a polícia, nem o ladrão. Ninguém.

Escrevo "ninguém" e a palavra fica ressoando na minha cabeça: "ninguém". O ladrão era ninguém - nem sabemos ao certo seu nome. O soldado que atirou cumpria ordens: era ninguém. Geísa, migrante favelada, era ninguém. O feto que ela carregava no ventre - esse nem ninguém ainda era.

Enfim, ninguém tem culpa. Afinal, só um ninguém para pegar outro ninguém como refém na esperança que ninguém da polícia o mate. Eles não têm respeito por ninguém. Eles cumprem ordens - é o que eles dizem. Mas a ordem partiu de quem? De ninguém.

Não importa. A ordem é sempre matar. Até que não sobre mais ninguém?

Talvez seja isso... A ordem é eliminar o pobre e não a pobreza. A ordem é eliminar o criminoso e não o crime. A ordem é matar.

E era dia dos namorados. Desses dias que o comércio inventa para ganhar dinheiro. Só isso. Mas para a ninguenzada, é dia de se sentir alguém. Alguém importante para alguém. E Geísa era alguém nesse dia - ao menos para seu marido ela era alguém. Alguém que carregava na barriga um filho seu - e para esse feto, ainda quase ninguém, Geísa era tudo.

Secretamente, Geísa era tudo. Em sua ignorância, em sua inocência ela desfilava pelas ruas do Rio seu ventre prenhe de mistério. Do único genuíno mistério: a vida. Lá dentro, um ser humano era gerado. Mais um brasileiro pobre ia crescendo indiferente às estatísticas e às manchetes de jornal. Alguém até lhe diria "Que loucura isso de pobre botar filho no mundo...". Mas ninguém não ouve. "Quem sabe este aqui não vai ser alguém...", Geísa talvez pensasse, se chegasse a pensar no assunto.

Mas quem se importa com a vida? Todos, ninguém? Ou só quem aprende que é alguém? Mas quem pode aprender a ser alguém se a mãe lhe falta, se lhe falta o pai, a escola - o amor, enfim? Ninguém.

E como deixar de ser ninguém se não há trabalho, se o dinheiro é pouco, se o respeito é nenhum - se você não é alguém...

Alguém, ninguém. Até quando esse jogo de palavras estúpido servirá de resumo para a vida que nos deixamos levar? Só alguém poderá dizer. Alguém que saiba que ser alguém é não dizer não para ninguém.

Desculpem, esta crônica não tem a menor graça e soa até um tanto tola.
Desculpem, mas é que era dia dos namorados...