24 de julho de 2000
Inverno no Rio

Começou o inverno no Rio. O vento frio que vem do Sul deixa o céu carregado de nuvens. As nuvens passam, lentas e incessantes, e vão produzindo uma surpreendente variedade de tons de cinza, que vão do azul ao quase negro. O sol encoberto envolve a cidade em uma luz sem sombras que faz com que cada objeto se exiba em toda sua expressividade, em todo o seu vigor de coisa única.

A árvore, por exemplo, já não projeta nenhuma sombra sobre o camelô que escolhera seu ponto justamente para usufruir dela nos dias de sol. A árvore agora é só a árvore, em toda a sua grandeza, em toda a sua solidão - assim como o camelô, os carros e toda a gente que passa apressada pelas calçadas.

Não há mais a rede de sombras que, nos esplendorosos dias de sol do Rio, parece capturá-las e uni-las numa teia de solidariedade. Não, sob esta luz sem sombras até as horas vão passando iguais e só nos damos conta delas quando já é noite.

É fácil perder a hora assim... É fácil perder o rumo, distrair-se procurando formas nas nuvens ou observando as tais variações em torno do cinza... É fácil porque o frio nos isola - dos outros e do mundo. Cobertos de roupas, todo nosso esforço passa ser o de conservar calor. O frio nos torna assim mais solitários e mesquinhos... Prefiro a promiscuidade natural do verão, a sensualidade selvagem daqueles meses de muito calor e pouca roupa.

Mas não desgosto destes dias: esse inverninho carioca tem seu charme - e dura pouco. Um tempo de recolhimento, de reflexão que pede casa, livro, boa música ou silêncio, solidão ou amor genuíno.

Aliás, essa idéia de "fim de ano" como uma época de "balanço", de avaliação do que passou é algo herdado dos países onde o inverno é em dezembro. Na verdade, para nós que estamos ao Sul do Equador, nosso "fim de ano" é agora...

Quando chega dezembro trazendo o verão, para nós aqui embaixo é, na verdade, um novo ano que começa, pouco importa que o calendário e certos cacoetes culturais travestidos de tradição digam o contrário. A gente aqui vive o fim como começo - porque nosso fim é no meio... Parece aforismo pré-socrático, mas é simples "geometria".

Aproveite então para "pensar na vida" agora. Trate de ir se despindo de todas aquelas pequenas culpas e frustrações que vão se acumulando e acabam pesando na alma da gente feito roupa suja na mala de volta... Seja sério, circunspecto, se faça promessas e planos - se você for chegado a esse tipo de bobagem...

Mas, enfim, trate de ir se preparando a seu modo para quando dezembro chegar - ou antes até, porque em novembro já começa a dar praia... Aproveite o inverno e esteja pronto para errar de novo - só que desta vez com mais precisão. Afinal, acho que foi Borges quem disse que "só os erros são nossos". Logo, é preciso ter muito carinho com eles...