23 de outubro de 2000
Era uma vez...

Era uma vez uma menina que não sabia dizer 'eu te amo'.
Ela atravessara a vida assim e já nem era mais uma menina, mas por dentro era como ela se sentia: uma menina, uma menininha, que morria de medo de dizer 'eu te amo'.

Era só isso que ela sabia ou quase: que era uma menina e morria de medo de dizer 'eu te amo'. Não lembrava mais porquê, tão antigo era o medo, anterior mesmo ao primeiro amor, o longínquo primeiro amor sem 'eu te amo'. Lembrava que pensara que, justamente por ser o primeiro, não lhe cabia o 'eu te amo' que sentia como uma vontade de voz dentro de si. Mas, seguiram-se outros amores e a pequena frase mágica - suspeitava - não lhe saía...

Foi preciso mentir da primeira vez que disse 'eu te amo'... Dissera por medo de não dizê-lo jamais e também para testar-se dizendo 'eu te amo'. Não gostou: lhe soube falso e amargo. Então rompeu com esse amor e nunca mais repetiu a frase. Nunca mais. E tornou-se a menina que não sabia dizer "eu te amo".

Foi possível casar, ter filhos e muitos amantes. Foi possível ter uma vida perfeitamente normal que em nada destoava da vida de suas amigas que não se importavam em mentir quando diziam "eu te amo" ou nem sequer pensavam nisso quando repetiam a frase atribuíndo-a a um sem número de objetos. De fato, ela chegou a aprender com elas a conjugar o verbo amar em todos os tempos possíveis e relacionado às coisas mais comuns: "Eu amo meu celular", "Amei este vestido", "Amava aquela casa", e assim por diante... Quem a ouvisse poderia se surpreender com a facilidade com que dizia amar e encantar-se com tamanha generosidade.

Mas "eu te amo" dito assim com voz sussurrada e grave, olhos nos olhos, úmidos e siderados, "eu te amo" ela nunca mais tentou repetir. "E nem preciso", ela dizia para si, quando nos pouco momentos de genuína solidão se punha a pensar nisso, fingindo para si mesma já não sentir medo nem ser uma menininha. Era possível ser infeliz e sorrir - ela aprendera.

Não seria tão grave o caso, "eu te amo" é uma frase banal, ouvida quase o dia todo nas músicas tocadas nas rádios, nos diálogos dos filmes e novelas, sempre associada a situações trágicas ou rídiculas, que bem poderia passar sem ela. Mais até: passaria melhor sem ela - e sua recusa já lhe soava como uma espécie de superioridade.

Mas não seria tão grave o caso, eu dizia, se a menina que não sabia dizer "eu te amo" não fosse tomada por um súbito horror à Lua. O Sol já quase não fazia parte da sua vida. Durante o dia usava sempre óculos escuros e transitava apenas em ambientes refrigerados onde as janelas eram raras. E a Lua era-lhe até então indiferente: nunca se dera muito conta dela.

Mas, de repente, sem nenhuma explicação, começou a sentir que a lua cheia a angustiava com a sua plenitude, que a lua nova a oprimia com sua ausência e que as formas que a lua ia tomando a cada noite no céu entre um e outro estado a inquietavam tão profundamente que já não se sentia mais capaz de amar as coisas que pensava amava.