13 de novembro de 2000
Gavetas

Estava na maior dúvida sobre o que escrever - futebol, segurança, filosofia - quando de repente me chega o e-mail de uma amiga lá do Mato Grosso do Sul: "Saudade de te ler falando de amor...". Como ela estava na Rede - o e-mail fora enviado naquele instante - acabamos batendo um papo pelo ICQ.

Nunca disse aqui, mas tenho também um endereço na Rede: www.cafeimpresso.com.br . Lá estão, entre outras coisas, alguns textos antigos, coisas que escrevi há cinco, dez anos atrás, e que disponibilizei para leitura dos que me visitam. O engraçado é que, no momento exato em que recebi o e-mail dela, eu pensava em uma crônica específica, de amor. Explico: todo mundo que escreve em jornal tem sempre um texto ou dois prontos para serem usados numa emergência. É o que a gente chama de "texto de gaveta". Pois bem, eu pensava se a tal crônica poderia ser uma dessas... Contei pra ela a coincidência e, para agravar o caso, essa crônica é a que ela mais gosta.

Eu costumo dizer que pensamos Deus como ordem e necessidade, mas é no acaso que sentimos encontrá-lo. A mim, ao menos, sempre que me ocorre uma coincidência dessas eu me sinto diante do Mistério. E todo meu corpo parece que vibra diferente, um calor se irradia dos meus olhos e um sorriso meio bêbado, meio beato se planta no meu rosto. Até escutar eu escuto diferente, tão alerta eu fico...

O que quero dizer é que, depois dessa, não há como não publicar a tal crônica. Na impossibilidade de penetrar o Mistério, reajo como supersticioso: vai ver que, por algum motivo que eu não alcanço, a crônica tem de ser publicada. Então lá vai...

Passara a raiva; o rancor, a mágoa. Passara o remorso. A própria dor passara. Restava o vazio, avesso a tudo e que a tudo consumia, buraco voraz que era o revés do desejo na escuridão do peito.

"Saudade" - a voz dela lhe sussurrava ao ouvido: o vazio tinha nome...

Pensou em ligar e ouvir ao vivo a voz que lhe povoava a vigília e os sonhos. "Melhor não" - decidiu a outra voz, a grave, que era a segunda metade da sua consciência. Em vez disso, foi remexer naquele monte de papeizinhos que sobram, destroços de naufrágio: cartas, bilhetes, recados... E assim, a tarde também passara...

Entre os muitos papéis, achou um, que dizia assim:

"A leveza da camisa sob a brisa
E a borboleta que alisa o ar,
Silenciosas".

Nada de especial - apenas, lembrava bem o dia...
Era um domingo de junho, preguiçoso como todo domingo. Ela e o bebê dormiam, e ele - eu, aquele outro - observava a mancha de sol que, feito um caracol, ia atravessando a sala lentamente, enquanto a brisa envolvia tudo num afago: a pele, seus longos cabelos, as palmeiras longe, as fraldas e a camisa no varal improvisado da varanda...

"Sim", dizia a brisa, eles eram felizes. Felizes contra todos os presságios; calma e preguiçosamente felizes como um dia de domingo em que a brisa refresca um sol que não queima...

Aí, entrou a borboleta. Era amarela e percorreu a casa feito uma benção. Depois, saiu, breve como tudo que é divino.

E até hoje, eu imagino que era ela quem fazia o vento com o movimento de suas asas...

***

Como me resta um espacinho, não resisto a ao menos tocar nos outros temas. Sobre futebol, recebi um outro e-mail criticando a crônica da semana passada, em que eu reclamava que a globalização trouxe para uns o pay-per-view e para outros ressuscitou o radinho de pilha. "Mas sempre foi assim", diz o leitor. "Nunca se transmitiu ao vivo, para o Rio, um Vasco e Flamengo no Maracanã".

Pois é exatamente essa questão: sempre foi assim. Sempre se tratou o Grande Rio, que deve ter, contando os municípios ao redor, umas dez milhões de pessoas, como se fosse uma cidadezinha de província. Como se a transmissão ao vivo fosse capaz de "esvaziar" o Maracanã, onde "só" cabem cem mil pessoas.

Insisto: se o futebol fosse algo de fato organizado para o público, um clássico encheria o Maracanã e ainda bateria recordes de audiência na TV. Aposto. E era isso que eu esperava da globalização: um pouco mais de inteligência.

Quanto à segurança pública no Rio... Quinta-feira, feriado, passei à noite pela Avenida Atlântica e contei 14 carros de polícia parados - fora uns dois ou três envolvidos numa dessas blitz 'Pega-rapaz', que nunca dão em nada - ou você algum dia leu uma matéria que começasse: "Foi preso ontem em uma blitz..."?

Imagine a área que seria coberta se aqueles carros estivessem rodando... Polícia tem de circular. Quando a polícia circula, vagabundo não cria limo. Circular, parar em sinal, encostar quem anda a mais de 60 km/h pelas ruas... Simples e óbvio.

Mas nem em sinal a polícia costuma parar... Não dá...