18 de dezembro de 2000
Além da linha vermelha

Comparar "Além da Linha Vermelha" e "O Resgate do Soldado Ryan" é um desses temas que vire-e-mexe aparecem quando nos falta assunto. Pois é... Eu sou da opinião que, à parte a contigência de ambos terem sido feitos em película fotossensível colorida e tematizarem a guerra, são dois objetos absolutamente distintos. Não é possível, portanto, qualquer comparação.

E resumo a diferença que os separa de um modo muito simples: Mallick faz cinema. Spielberg faz TV. E ponto.

"O Resgate do Soldado Ryan" é mais um filme de Spielberg - e quem viu um, viu todos. "Além da Linha Vermelha" é, ou será, certamente um dos melhores filmes já feitos - e sua inclusão nas listas é só questão de tempo... Ou alguém cai pra segunda divisão ou uma mistura de Rubem Ewald Filho e Eurico Miranda vai ter de inventar uma lista de Dez Mais com onze...

Mas, enfim, para justificar a impropriedade da comparação, só comparando. Então, vamos lá... Sob o ponto de vista, digamos, do conteúdo, Mallick realiza uma reflexão sobre os limites da condição humana - "por que afinal escolhemos a morte e não a vida?" - e um claro manifesto antibelicista e anticapitalista, ao mostrar a coincidência brutal entre a lógica da guerra e a lógica do lucro.

Spielberg, ao contrário, faz uma comovente (como sempre) exaltação da "inteligência militar" e tenta dar-lhe um verniz pseudo-humanista ao construir sua história em torno do esforço de se resgatar o último filho vivo de uma mulher que já perdera outros três na guerra. (Qualquer espectador menos burrinho já de cara se pergunta como é possível tal barbaridade - enviar os quatro filhos de uma viúva para a guerra - mas a questão não é sequer sugerida: os Ryan foram à guerra para que Spielberg pudesse fazer seu filme... Spielberg é um autor infantil).

Os personagens de Mallick são construídos com muita precisão: cada um representa uma forma de pensamento e age como tal: há cético, o místico, o religioso, o apaixonado, o pragmático, o materialista, o intuitivo, o meramente egoísta. Deus - imanente para o místico ou transcendente para o religioso - o Amor, a História, a Carreira, a Indiferença - cada um se ancora em sua crença para seguir vivendo em face do absurdo.
Em Mallick não há de um lado o bem e de outro o mal, há homens comuns reduzidos contra a vontade a peças sem valor da grande indústria bélica: não existe guerra justa.
Os personagens de Spielberg, ao contrário, são meros estereótipos sem substância.

Mas é sob o ponto de vista , digamos, da forma, que as diferenças saltam aos olhos. Mallick constrói uma sinfonia: o fluxo narrativo se alterna em ritmos inesperados, como se dividido em "movimentos". Ex-combatente, Mallick sabe que a guerra se constitui de longas esperas e súbitas explosões de horror.

A câmera é ágil, todo o tempo comprometida com a narrativa: ora se esgueira, trêmula e jornalística, ora se entrega a devaneios oníricos, ora é fria e documental. A mesma voz narra o filme em off, assumindo o ponto de vista de cada um dos personagens, mas sem que saibamos de onde ou de quando ela nos fala. É como se todos os personagens fossem um só ente, constituído da solidão irremediável de cada um.

Mais importante, som e imagem quase nunca "trabalham" em sincronia - essa mera sincronia que constitui o realismo no cinema - o que amplifica o efeito sinfônico do filme, seu caráter antirealista quase. Imagem, som, música, texto correm em paralelo, como se fossem diferentes camadas ou níveis de informação que se somam sem redundância.

Em Spielberg, no entanto, a narrativa segue linear, sincrônica e sempre previsível: é possível apostar, por exemplo, que o idiota sobreviverá, alterego sempre presente nos filmes de Spielberg. Até nossas lágrimas, inevitáveis, são previsíveis - como se um chefe de claque invisível orientasse nossas emoções para o final patriótico, com a carta do general - que certamente não perdeu seu filho na guerra - e a bandeira tremulando ao fundo. Patético.

Em Spielberg, a emoção se produz pelo acúmulo, pela reiteração, pela repetição. Em Mallick, a emoção é um requinte a que se chega pela via da perplexidade: é sempre a emoção de um novo sentido e não a reiteração de um preconceito. Epifanias, enfim, e não lugares-comuns.

Claro, o establishment americano tinha de premiar Spielberg e "esquecer" Mallick o quanto possível. Um nos impele à revolta contra o perverso racionalismo da guerra - e do capitalismo. O outro, tenta nos seduzir com a idéia de uma guerra pode ser boa - o problema é saber para quem...

Enfim, leitor, quando ela pintar, desqualifique a discussão como sem sentido - não se comparam objetos distintos, como angu e caviar - e seja impiedoso com os defensores de Spielberg: ele não faz cinema, faz TV. Já o filme de Mallick é golaço aos 45 do segundo tempo: o século que inventou o cinema não podia encerrar sem emplacar uma obra-prima.