5 de março de 2001
Carnaval no Rio

Neste carnaval descobri muitas coisas. Descobri a Candelária, por exemplo. O nome ainda soa lúgubre, último lugar para se marcar com alguém um encontro, ainda mais à noite. Não no carnaval. Havia gente o bastante - pouca, mas boa - suficiente para dar segurança sem roubar o conforto: flanelinhas, guardas municipais, pedaços de alas que voltavam do desfile, as alegorias trazidas nos braços com nobreza, coladas ao corpo, pacíficos elmos difíceis de entrar no ônibus de volta para casa, os alegres guerreiros cansados demais para zoar.

Nunca antes reparara como é bonita a catedral. Pra ser honesto, nunca sequer entrei na Candelária. Deveria estar aberta 24 horas, ainda mais no carnaval, para emergências espirituais e turísticas, um símbolo da onipresença divina.  Fico imaginando o espetáculo de baianas e passistas devotos indo buscar a benção antes do desfile e acendendo velas cheias de fervor. Fico imaginando as milhares de velas votivas queimando no interior da igreja, miudinhas, velas aromáticas de muitas cores, as cores das escolas se misturando com as cores dos santos de devoção: Ogum, Oxosse, Mangueira...

Não custava também inventar uma linha de ônibus abertos, imitando os bondes de Santa Teresa que fariam de graça a ligação entre a Sapucaí e a Candelária. Indo e voltando todo o tempo, cheios de foliões em batalhas de confete e serpentina.
Quase já não se vê mais confete e serpentina...

Esta constatação súbita me acrescenta uma tristeza inesperada, indesejada mesmo. Não era minha intenção, leitor, entristecer no meio da crônica, mas é que a falta da serpentina e do confete era uma falta que, pelo visto, pairava inominada sobre o meu espírito carnavalesco. Talvez tudo o que se lamenta do carnaval se resuma nisso: não tem mais confete e serpentina. Repita você mesmo a frase umas três vezes, com uma voz cava e lenta e verá que ela soa sintética como um oráculo...

Mas não quero ser nostálgico, lamentando os corsos que não vi, ouvi: memória herdada em fotos e relatos. O fato que retrato agora é o meu espanto de alegria com os bastidores do desfile que flagrei descendo a Presidente Vargas.

O luxo comovente dos carros alegóricos, o preparativo das alas, circulando mais rápido por entre a multidão que evolui lenta, pra lá e pra cá, encantada com a paisagem de sonho, êxtase que se mistura com a exaustão dos que voltam do desfile ou vagam, bêbados, entre os cheiros diversos que tornam o ar, já eletrizado, ainda mais denso, a falta de voz de uns contrastando com a euforia dos que gritam mais alto seu pregão...

Enfim, de repente me vi gostando de carnaval - eu que estava ali quase a contragosto, apenas para acompanhar um grupo de amigos de fora e me certificar de sua segurança, eu me surpreendia com o clima onírico e pacífico do carnaval na avenida, com a amabilidade espontânea do carioca.

Nenhuma cena de violência, nenhuma briga, nenhum bate-boca: aqueles que presentemente encarnam o espirito da cidade comportavam-se à altura de nossa tradição. Como se, na festa da carne, o Rio ficasse mais imbuído de sua alma.
Na verdade, o fato definitivo para minha conversão se deve a um senhor, cujo nome minha ingratidão apagou da memória, mas que meus olhos hão de lembrar eternamente.

Mulato magro, ágil - e mangueirense - a ginga de malandro incorporada de gestos vagamente rappers - lá ia ele, em passadas olímpicas e espaçosas. Emparelhei e puxei conversa. Os olhos eram grandes e redondos, negros, brilhando uma curiosidade desconfiada que combinava com o bigodinho grisalho, quase branco. Eu senti sua pressa e fui objetivo: queria saber se a Sapucaí era mesmo o túmulo do samba, como eu argumentava pra recusar anualmente todos as ofertas de visita. Ele parou e me encarou, sério, para certificar-se da inocência da pergunta - e demorou um instante para que o quase desprezo se anuviasse do olhar. "Desfilo desde 53, sempre pela Mangueira", enfatizou, antes de afirmar, definitivo: "Nunca houve lugar melhor que a Sapucaí".

E aí, caminhando, me explicou que, ao contrário do que eu pensava, existe muito mais espaço hoje para a evolução das alas e que a padronização dos carros de som permite não só uma melhor harmonia, mas a igualdade entre as escolas.
Por fim, ainda descobri que há um Caetano na diretoria da Mangueira - algo que muito me envaideceu na hora, como se a possibilidade vaga do parentesco me garantisse algum conhecimento extra dos mistérios do samba - ainda que, devo confessar, eu também me arrisque a fazer os meus sambinhas...