9 de julho de 2001
Falso inverno

Ela quer saber o que tem em comum com outras mulheres que tive. "O que elas tinham de pior", respondo rindo, mas não minto. Exagero, é verdade. Mas não minto. Ela ri. Então completo, fazendo a média: "O que elas tinham de comum e pior era eu". É mesmo de se rir, isso de buscar as razões de gostarmos de alguém... Descartes, porque tivera uma babá estrábica, não podia ver uma vesguinha que babava. Eu não posso olhar esses olhos de Modiglianni que me abismo. Gosto do olhar vago da sonhadora, da solitária, da errada. Da errante, enfim - numa palavra que resume todas e até soa bem. Gosto do olhar vago das errantes, é isso. Gosto do tempo que a verdade dura em tua boca. A verdade dura, de verdade dura, em tua boca. Divago.

Falo num vai-e-vem de palavras, feito as ondas espumantes do mar no inverno, este falso inverno carioca. O Rio está cálido. Cálido ou delicadamente quente. Cálido, luminoso, límpido. E quieto. Surpreendentemente quieto, calmo. O verão é quente, barulhento, sujo, tenso. Este veranico é gato, um falso inverno que, se usasse o passaporte destes dias, também acabaria expulso da Itália. Para quem não conhece o Rio, é a melhor época de vir. É uma dádiva, um segredo carioca: todo mundo pensa que o melhor do Rio é o verão, mas só para os amigos confessamos que o melhor é agora.

Aproveita, vem. Preciso ver você. Ver. Fotografar você com a minha rolleyflex: de longe, de perto, por dentro. Quero ver você no silêncio das fotos. Quero devorar você com meus olhos cheios de dedos. Se a realidade nos constrange com regras, bulas, leis, medos, tratados, conselhos, diagnósticos e prognósticos façamos assim: a gente marca um encontro numa rua qualquer, estreita e longa, e cada um escolhe uma calçada. E aí a gente vai descendo devagar, só se olhando, se fotografando com os olhos. Até chegarmos em uma esquina onde haja orelhões dos dois lados para que a gente possa se ligar... Pois, como nenhum de nós tem celular - somos gente de outra espécie, somos anjos de asas pretas - a operação é complexa: eu anoto o número do meu orelhão e nós atravessamos a rua, trocando de calçada, quando então aproveitamos para 1) roçarmos nossos corpos 2) bebermos o sorriso do outro 3) farejarmos no ar o perfume dele 4) quase sermos atropelados.

Uma vez cada um na calçada alheia, eu ligaria para o meu antigo orelhão, onde você já me aguardaria sem nenhuma ansiedade, mas tomada de sobressaltos e então trocaríamos impressões sobre a calidez do tempo, a qualidade das nuvens, o cheiro verde do mar e marcaríamos um novo encontro para dali a meia hora em algum lugar que nos exigisse andar no mesmo vagão de metrô para ficarmos nos olhando de soslaio nos espelhos dissimulados que as janelas viram a cada vez que a composição mergulha nos subterrâneos da cidade.

Uma vez na estação escolhida, nos perderíamos! Nos perderíamos porque é próprio dos amantes se perderem - em todos os sentidos. Se perderem um do outro, se perderem de si mesmos, se perderem fisica e abstratamente. Se perderem e se encontrarem muitas e muitas vezes e nas circunstâncias mais diversas.

E, assim perdidos, seguiríamos, cada um por si, para o encontro. Mas, no caminho, você acabaria escolhendo outro lugar, encantada com a idéia de um bistrô com mesas nas calçadas, sobretudo encantada com a palavra bistrô, porque ela remete à Paris imaginária que todo mundo traz no peito, a Paris que rima com feliz. Mas logo em seguida, você começaria a ficar ansiosa com o meu atraso, impaciente por eu não saber adivinhar onde você está guiado apenas pelas batidas do teu coração.

Só que eu, na verdade, não me perdera e te seguira, de longe e em segredo, apenas para te ver caminhar distraída, e agora te observava me fingindo de flamboyant só porquê você se decidiu por um bistrô em Paris. Mas você também não é boba nem nada e logo percebe que um flamboyant florido assim nessa época do ano só poderia ser eu exultando de contente. Assim docemente flagrado, eu viria sentar-me ao seu lado me desfazendo em pétalas. Ao lado, não. De frente, porque só então eu te olharia longamente nos olhos bem dentro do teu silêncio e seria inevitável que nos déssemos as mãos...