10 de setembro de 2001
A estética da revolta

Uma exposição sobre o Surrealismo até viria mesmo a calhar. Ou melhor, não uma exposição sobre o Surrealismo, mas uma exposição surrealista. Não essa bobagem que agora ocupa os salões do Centro Cultural Banco do Brasil, mas um evento que de fato encarnasse a estética da revolta que define o Surrealismo como movimento. Revolta do homem contra as instituições, revolta do inconsciente contra os limites impostos à consciência. Era a hora. De repente, de forma mais ou menos espontânea e desarticulada, os fatos se acumulam: seres como ACM, Maluf, Jáder, Luis Estevão, Ricardo Teixeira sentem, pela primeira vez, o roçar das asas da Justiça. Os negros finalmente começam a se insurgir contra o sutilissimo racismo brasileiro, onde o negro pode tudo, só não pode mandar. A farra neoliberal chega ao fim e anuncia que arrastará o mundo para uma recessão global sem precedentes - recessão que entre nós já é um fato, a despeito das afirmações dos suspeitos de sempre. O PT lidera as pesquisas e de novo ameaça fazer de Lula presidente do primeiro governo socialista da história do Brasil.

Tudo isso tanto pode dar em nada, como pode dar em muita coisa. São indícios que não têm exatamente o sabor de novidades, mas expressam um sentimento de revolta que mistura medo, frustração, desencanto, desespero. Mas uma revolta sem estética, conduzida com eficiência pela mídia.

A coisa funciona mais ou menos assim: subitamente, a violência, a miséria, a corrupção e o crime tomam o noticiário. Lula é mostrado liderando as pesquisas. O alerta vermelho dispara. "Claro, nada contra Lula ou o PT, mas nessas circunstâncias, falar de socialismo logo agora que a gente começa a se preocupar com vocês? Ou vocês não andam lendo as manchetes?". Convoca-se então o Nizan Guanaes para transformar a filha do Sarney - do Sarney! - em salvação da lavoura arcaica. Rápida superexposição na mídia: entrevistas, videoclipes eleitorais, etc. Em seguida, contrata-se o presidente do Botafogo - que quer o lugar do Ricardo Teixeira, na CBF -para fazer uma pesquisa do Ibope. Supresa! Roseana nas cabeças! Simples assim. E científico: os marqueteiros são os Menguele da ética e clonagem mental é a sua especialidade. São vírus oportunistas que dependem da ignorância e da miséria para se propagar. Eis aí a fórmula genérica da democracia pós-fascista disfarçada de neoliberal. Quem viu "Mera Coincidência", com Dustin Hoffman e Robert De Niro sabe do que estou falando.

Por isso, neste exato momento, quando "eles" se agitam para angariar nossas mais nobres esperanças e manipulá-las para que tudo permaneça na mesma, uma estética da revolta e do escândalo serviria ao menos de contraponto. Uma exposição que encarnasse o espírito surrealista e mostrasse a essa juventude inculta e bela que a arte é um fazer acessível a todos os que ousem criar e não uma coleção de peças de museu ou de acervos particulares de colecionadores e marchands interessados apenas em vender.

Aquilo que está lá no CCBB é o velório do Surrealismo, o avesso de tudo que foi idealizado por Breton e companhia. O Surrealismo veio para acabar com todos os museus, para impregnar de arte o cotidiano, para dessacralizar a figura do artista e do fazer artístico. Era a hora: nossos heróis morreram de overdose e os que sobreviveram hoje trabalham na Globo. Melhor assim - que cada um faça da arte instrumento de emancipação pessoal e coletiva. "Venham e aprendam a arte que se faz das sobras, do lixo, do inconsciente".

Nada. A exposição custou alguma coisa entre dois milhões e meio e quatro milhões de reais - a quem essa gente presta contas? - e não há um folheto, um programa da exposição! Mímicos fantasiados de personagens de Magritte e Dalí passeiam em meio à garotada que espera numa fila de velório sem saber a que quadros eles fazem referência. Os únicos textos disponíveis são projetados no chão! Tudo muito bonitinho, mas inócuo. Pseudo é o prefixo.

Há peças importantes. O ferro de passar coberto de pregos, de Man Ray, por exemplo - um símbolo feminista que o feminismo nunca soube aproveitar. A Vênus, de Dalí. Ou a ala de artistas brasileiros. Mas, no geral, o que se expõe são peças secundárias, sem referências ou explicações mais detalhadas, mal organizadas. Claro, a mídia amestrada babou - conivência ou ignorância, não sei.

Uma exposição surrealista exigiria um curador com a coragem de dar uma banana à canalha que domina o mercado de arte nacional e internacional e tomar uma atitude radical. Não precisaria trazer ready-mades originais de Duchamp ou Man Ray - simplesmente contrataria artesãos brasileiros para reproduzi-los aqui. A vontade que me deu, por exemplo, foi arrancar um dos mictórios do banheiro e pregá-lo de cabeça para baixo numa parede, marcando com cal no chão a trajetória da peça desde o banheiro até a parede. Eis aí, de novo, tão pura quanto da primeira vez, a Fonte, de Duchamp. O ferro de passar de Man Ray eu faria em série para distribuir entre as mulheres. E criaria oficinas de ready-mades e colagens para que a galera produzisse ali, na hora, suas próprias peças. Pegaria os quadros mais significantes do Surrealismo e os reproduziria em posters de alta qualidade no tamanho original - dane-se que as peças tenham se tornado tótens em museus do Primeiro Mundo! O que importa é difundir o espírito surrealista, essencialmente libertário e antiburguês.

Mas, claro, uma atitude dessas custaria muito caro aos curadores. O que diriam museus e colecionadores ao verem suas peças reproduzidas assim, "desvalorizadas" assim? Escândalo! No melhor estilo surrealista. Decididamente não era isso que o tal mercado esperaria do francesote pequeno-burguês que comanda a arapuca. Alguém se anima a lhe auditar as contas? Não, não ficaria bem falar de dinheiro numa hora desssas...

Em tempo: no dia em que eu fui não vi um negro na fila do velório. Nossa elite branca, competente na arte da exploração, acaba de inventar o Surrealismo light, isento de calorias, monótono com uma academia de ginástica. Não, leitor, não perca seu tempo. Em vez dessa arte congelada, vá visitar o Museu do Folclore Brasileiro que fica no Catete, ao lado do Museu da República. Ali você vai descobrir que o Brasil tem arte, que o Brasil tem jeito. Falta só um pouco do espírito surrealista para dar voz à criatividade e à revolta.