17 de setembro de 2001
À cidade de Nova York

Choro por você, Nova Iorque. O tal mercado em algumas semanas já terá "voltado ao normal", alguns até mais ricos com a dor e com a crise. Há tanto agora a resconstruir e a destruir - com querem muitos. Financiamentos, créditos, seguros. O tal mercado não pára nunca: tudo é negócio e a falência de uns é sempre a ascensão de outros. Nada a lamentar. Simplesmente é assim que funciona e é até melhor que seja assim: o que não nos mata nos torna mais fortes - até que aprendamos a não morrer.

Choro por você, Nova Iorque. Não por aquela, confinada aos poucos quarteirões financeiros de Wall Street, não pelos prédios ou pelos negócios desfeitos, não pelo fim ou pelo começo desta ou daquela era, não pela crise ou pela opulência. Choro, sim, pela milionária cifra dos teus mortos soterrados nos escombros, igualados, executivos e engraxates - que importa agora? - pela outra face da exuberante irracionalidade que sobre todos se abateu com a indiferença de um deus maligno.

Choro por Nova Iorque, a verdadeira, que não se confunde com o tal mercado e que atravessou os séculos, dinâmica e incólume até estes dias. Choro pela Nova Iorque que corre desde os tempos heróicos dos índios e dos primeiros colonizadores pelo traçado incerto da Brodway, conservado assim por incontáveis gerações.

Quanto tempo até que uma cicatriz venha fechar a ferida aberta nestes dias infames e devolver a alegria a tuas ruas multirraciais e caóticas, a tuas ruas imantadas da energia que corre incessante por tuas invisíveis estruturas de aço? Quanto tempo, enfim, até que de novo você volte a ser a capital de Liberdade - cruel, às vezes, mas até estes dias, inabalável refúgio da Esperança? E quanto tempo mais até que a cicatriz também se apague e nenhuma lembrança reste a conviver com a imbatível humanidade que te anima? Não sei. Ninguém sabe.

Se eu mesmo, aqui, a oito mil quilômetros de distância, impressionado pelas imagens da tv, ainda custo a crer no que relembro ter visto e quando a cena do avião colidindo contra a Torre me vem à mente, ainda levo algumas frações de segundo para jogar a imagem na pasta "realidade" em vez de deixá-la seguir para a pasta "pesadelo", imagino o que você, Nova Iorque, não estará remoendo nas tuas entranhas que são a alma de cada um que te habita...

Durante muito tempo - dias, semanas, meses? - teus filhos acordarão - isto é, aqueles que reaprenderem a dormir - com a nítida sensação de que tudo não passou de um sonho ruim, descrentes das indicações da memória, desorientados e abatidos, incertos de para onde seguir, inseguros de como seguir.

Durante muito tempo - semanas, meses, anos? - as Torres serão um vazio veemente na paisagem a suscitar imagens impossíveis de esquecer. E o coração até do mais duro de teus filhos se contrairá - se de ira, compaixão, dor, saudade, nem poderá dizer: indistinguíveis sentimentos marcam a alma de quem presenciou o absurdo e pode apenas lamentar ter estado em vida no inferno. E a custo o mais duro de teus filhos há de tentar reter no peito contraído uma lágrima de fogo.

Hoje, ainda cinzas, poeira e lama recobrem tuas ruas sempre abertas à vileza e à santidade, à usura e à misericórdia, mas certamente até há uma semana inocentes do absurdo.

Ele veio - foi teu batismo, brava cidadela da Liberdade, da Ilusão e da Esperança. Veio com precisão tão maligna que fez questão de se confundir com as mais negras profecias: "O fogo à noite tomará conta de duas construções. Diversas pessoas que estão dentro sufocarão e queimarão. Acontecerá perto de dois rios que se juntam. O Sol, Sagitário e Capricórnio estarão em oposição."

Ou esta, todas extraídas das Centúrias, de Nostradamus: "Na Cidade de Deus, haverá um grande trovão.Dois irmãos rasgados ao meio pelo Caos; enquanto a fortaleza resiste, o grande líder sucumbirá. A Terceira Grande Guerra irá começar quando a Grande Cidade estiver em chamas".

Não creia, Nova Iorque. O Mal quer sempre se revestir da Fatalidade para que os fracos o reverenciem como inevitável. Não, hoje certamente o rancor ainda te corrói por dentro e o desejo de vingança se mistura a um sentimento natural de impotência face ao inimigo sem face que em sua desfaçatez se esconde entre crianças cegas pela ignorância, a miséria e o fanatismo. As mesmas crianças que você se acostumou a acolher com promessas de conhecimento, riqueza e sabedoria. As mesmas crianças que, ao longo dos séculos, têm sido teu sangue e tua alma. Elas te fazem e você as transforma.

Que Deus te abençoe, Nova Iorque, capital de nossa melhor utopia, a única sobrevivente ao teste do tempo e do que de pior há nos homens. Que Deus te ilumine, Nova Iorque e à Liberdade e Igualdade que sempre você soube oferecer aos enjeitados que te pediram abrigo, você saiba agora, quando a Infâmia te afronta em desafio, responder com a Fraternidade que nos falta para, enfim, completar a revolução definitiva.