19 de fevereiro de 2001
Flores

Diz o Antonio Maria que crônica que tem janela por tema é coisa de principiante. Eu acrescento: e cronista de segunda, condenado por seu talento limitado a abusar dos recursos permitidos apenas aos principiantes. Mas, como tudo tem suas compensações, o cronista de segunda é um eterno principiante, o que acaba, tem lá o seu encanto. Aliás, eu sou mesmo um cronista de segunda, visto que é neste dia da semana que sou publicado.

Taí: bem poderíamos mudar o título da coluna de "Crônicas de Amor e Perplexidade" - que soa tão excessivo - para "Crônicas de Segunda" - bem mais simpático, como tudo que é ambíguo... Enfim, eu tenho o hábito das janelas - coisa de gente tímida que gosta de se por à parte e olhar de longe? Pode ser - e basta: não vamos agora nos perder na psicanálise do hábito de frequentar janelas...

Há dias inclusive em que acordo e, antes mesmo de enfrentar o espelho do banheiro, pouso antes na janela para ver a rua. Como não tenho relógio no quarto e o de pulso às vezes se perde em algum lugar do apartamento, saco as horas do movimento da rua e da posição das sombras. Hoje, por exemplo, deviam ser, no máximo, umas nove horas quando me debrucei no parapeito e, protegido pela persiana externa, lancei uma olhar furtivo para a rua ainda calma e cálida.

Eis que de repente me aparece do nada uma mocinha desconhecida correndo aos pulinhos - apertada que estava numa dessas saias que se afinam na altura dos joelhos e munida de um par de sandálias de salto que ela, via-se, ainda não aprendera a usar. Mas havia tamanho charme na alegria com que ela corria, risonha e um tanto esbaforida, que era quase de se agradecer sua falta de jeito para lidar com os saltos das sandálias.

Corria, logo entendi, para entrar em um carro que a aguardava junto ao meio-fio da calçada. Um desses Uno Mille modelo antigo, cinza desbotado de sol e falta de cuidado. Dentro, um rapaz a esperava. Mal ela entrou, os dois se agarraram em um abraço entremeado de beijos. Um abraço meio desajeitado - a posição não ajudava em nada - mas carregado de uma espontaneidade própria dos animais jovens, para quem tudo é de uma novidade imensa.

E então, num gesto de mágico de circo, o rapaz me saca - sei lá, do banco de trás, presumo - um buquê de rosas vermelhas! Ah! A felicidade da moça luziu cá em cima no oitavo andar como se fosse um meio-dia! Ela abraçou o buquê com a mesma paixão com que abraçara o rapaz, mas com mais cuidado talvez, encolhendo os ombros e fechando os olhinhos de um jeito que lhe franziu o narizinho de menina feliz !
O leitor me desculpe a precisão com que descrevo a cena... Não seria humanamente possível que eu, do alto do meu oitavo andar e com os olhos ainda mareados de sono, pudesse ter visto com tanto detalhe o rosto da moça. Certamente é outra moça que vejo agora quando descrevo - mas se digo que vi ou se dissesse que apenas imagino ter visto, convenhamos, não tem a menor importância.

A verdade é que ela deve mesmo ter fechado os olhos e se transportado - por segundos incontáveis que sua alma de menina há de tornar eternos - para algum paraíso juvenil onde ela e o rapaz merecidamente serão Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Capitu e Bentinho - eu e você, quando chegares amanhã.

Você não sabe, rapaz, o bem que nos fez, a mim e à moça. Acordar presenciando uma cena dessas é algo que me ilumina o dia. Aliás, diria mais: a mim, à moça e a essa outra moça que esperarei com flores. Eu, que às vezes me esqueço de ser jovem, de ser assim espontaneamente óbvio e vir de rosas vermelhas em punho.

(Mas, apenas para encerrar a descrição da cena, a moça aninhou com elegância insuspeitada o buquê em seu braço direito e deu um longo e solene beijo no rapaz que, depois, não pode evitar de arrancar com o carro cantando os pneus...).