19 de março de 2001
O gesto imprevisto

Escultural, a moça - exibida na justa precisão da calça de malha e camiseta. No instante em que a viu, enlouqueceu. Ela estava na fila de emprego de uma lanchonete fast-food que dava voltas em si mesma, cheia de jovens, sob o sol de janeiro. E reinava, senhora de si. "Com altiva humildade ou muito à vontade em sua beleza?", ele mal sabia que pensava, rondando à volta - até achar uma mesa quase defronte a ela em um bar que a fila imóvel tangenciava... Ela de pé era mesmo de se ver. Sem pressa, ele pediu água, pediu café, pediu cinzeiro, pediu caneta e papel, pediu com os olhos, mas nada... E daí? O luxo imperial de contemplá-la, de poder contemplá-la, enquanto o mundo passava absorto e cego aos seus encantos, compensava a falsa indiferença dela.

Beleza embebeda e logo o louco em seu delírio já idealizava gestos monumentais. E, como é na infância que o amor se ancora, são sempre flores o gesto que imagina. Sentia-se livre, poderosamente livre, por conceder-se esse tempo e esse olhar, por estar só ali, sem mais... Como também não tinha a tarde toda e a timidez dele e a indiferença da moça não davam rumo de esperança, foi-se, cortando a cena de romance que a embriaguez engendrava.

***

Passaram-se os séculos que são o dia-a-dia, e eis que ao anoitecer quando ele passa de novo pelo mesma esquina, saído do banho, perfumado e limpo, ela ainda está lá, cansada agora, mas ainda reta e nobre, nova, linda de se ver! E então, movido pelas cores do crepúsculo de verão que viram o céu em veludos, lá se foi ele, repentino e decidido, atrás de flores e um cartão! Coisa difícil àquela hora, quando todas as lojas começavam a fechar...

Mas há sempre um anjo negro vendendo flores nas calçadas e capaz de embrulhos deslumbrantes com papéis que virão talvez do lixo e há amigos que erguem de novo as portas porque reconhecem a urgência de um cartão...

Houve assim as flores - vermelho sangue contrastando com o púrpura do céu salpicado de estrelas - e o cartão - imagem de um anjo dedilhando uma guitarra com um baseado espetado entre as cordas.  No verso, vinha escrita a prosa que engendrara de improviso: "Tudo fala!. Ainda mais as flores. Estas te sussurrarão: o nome dele é Fulano e o telefone é ..... Liga! Quem sabe ele não te diz alguma coisa...".

Embaraçado com o gesto que lhe parecia agora insustentável de tão grandioso, coerente com a mensagem do cartão, receoso das possíveis reações de uma multidão de jovens, preocupado com a hora e tão encantado com a moça que só pensava em fugir (reduzido, enfim, à sua humanidade pela idéia que materializava) se poupou de mais palavras e, ao lhe entregar as flores, disse apenas: "Pra te dar sorte..".

Quis tecer no silêncio um sorriso e um olhar que se queriam ternos e fortes, mas de certo sabe apenas que murmurou "tchau", virou-se e foi embora. Quando já atravessava a rua, ouviu o êêê da garotada ao se dar conta das flores, tão discreto ele fora. O segundo êêê já pertencia ao tenebroso terreno do previsível: era o cartão, que eles percebiam com atraso...

Riu, lindo, feliz de si e de presumir feliz a moça, embaraçada de flores. Redimia-se do ridículo que seu sonso realismo apontava: ele fôra o gesto imprevisto, pensava, vaidoso - o gesto imprevisto que rasga como um raio de luz o previsível tenebroso.

Pouco importava que ela não seguisse o conselho das flores. Ficaria o gesto como registro, signo, lembrança de a beleza merecer sempre o imprevisível. E o fato haveria de ser contado feito lenda às gerações seguintes estimulando a galante ousadia de se oferecer flores a desconhecidas.