20 de agosto de 2001
Essa mulher

Eu tive de telefonar para Sérgio Ilha em Brasília porque foi ele quem me contou a história de amor que será tema desta crônica. Liguei em busca de detalhes: eu lembrava do essencial, de si inesquecível, mas não guardara o acessório, aquele conjunto de fatos supostamente secundários que dão cor e sabor a toda história. E veja o leitor que ironia: hoje é mais barato ligar para o exterior do que fazer um interrurbano aqui mesmo para o Brasil. Enfim, custa menos ligar para Nova Iorque do que para São Paulo. Mas o dever da crônica bem feita se impõe a essas contingências financeiras, às vezes mais difíceis de entender do que as sem-razões do amor.

Liguei então, na hora boa, depois da meia-noite, porque meus amigos, como eu, são seres mais noturnos do que diurnos. Não que desprezemos o sol, mas como é durante o dia que se urdem, por exemplo, essas enigmáticas tarifas, nós, que não vemos nenhuma graça nessas bobagens que nos parecem versões modernas de miçangas e espelhinhos, nós preferimos o silêncio da noite e suas ilusões. Liguei e o Sérgio, não querendo assumir a posição que eu lhe conferia de fiel depositário da história, me repassou para o Marcito, amigo comum nosso e mais ou menos vizinho das personagens da história.

No outro dia de tarde, liguei para o Marcito. Mas no meio do papo, eis que ele vê passar correndo em frente à janela da casa dele no primeiro andar, um conhecido vendedor de praia lá do Leme, perseguido por PMs. Alguém que acompanhava a perseguição, pára para contar que o pobre havia sido flagrado fumando um modesto baseado no fim do expediente da barraca, com a praia já quase vazia e, não querendo encarar a PM, correra. Tudo isso acontecendo comigo ao telefone, de testemunha auricular dos fatos...

Muito justamente, Marcito resolveu interromper nossa conversa para ir dar uma força ao cara que, negro e pobre, só poderia mesmo contar com a solidariedade dos vizinhos brancos e ricos para se livrar da prisão. Não sei como acabou esta história que me interrompeu a reconstrução da outra, mas ela mesma já seria motivo de uma crônica defendendo a liberação de todas as drogas. Fica para outro dia, mas não custa recomendar ao leitor que procure na Internet a matéria do The Economist que defende a liberação. Matéria de primeira.

Mas hoje nosso tema é a Lígia. Pois chamava-se Lígia a mulher. Do homem não tive tempo de saber o nome, mas não importa: em homenagem ao Tom Jobim, vamos chamá-lo de Antonio Carlos. Lígia e Antonio Carlos foram dois adolescentes apaixonados. Mas como Lígia era rica e Antonio Carlos pobre, a família dela resolveu acabar com aquela paixão e mandou-a estudar na Europa. Não custa imaginar o Antonio Carlos por aqui tomando porres homéricos e abissais ou flertando com a morte numa noite de ressaca na Pedra do Leme. E Lígia, claro, em Paris, tentando engrossar o Sena com as suas lágrimas. Mas a vida segue, Antonio Carlos se casa, Lígia também, o tempo passa.

Uma noite, Lígia é convidada por amigos para uma festa de 20 anos de casamento. Lígia não quer ir, nem conhece os donos da festa e anda triste porque fazia pouco tempo o casamento dela acabara. Mas os amigos insistem e ela acaba cedendo. Pois é, leitor, imagine quem é o dono da festa? Exatamente! Antonio Carlos! Quando ele abriu a porta do apartamento para receber o grupo e os dois deram de cara, vinte e tantos anos depois, primeiro seguiu-se um silêncio eletrizado e denso que se estendeu como um longo tapete vermelho entre os dois antes que eles explodissem num abraço que logo virou um beijo e naquela mesma noite Antonio Carlos arrumou suas coisas e foi morar com Lígia.

Esta crônica não consagrará mais do que duas linhas à ex-mulher de Antonio Carlos. Direi apenas que, se for nobre sua alma, há de abençoar esse "Romeu e Julieta" com final feliz - que, da sua parte, prescinde de todas as bençãos e perdões, porque o amor, como alerta Jacob Boehme, purifica tudo.

Antonio Carlos e Lígia, claro, estão juntos até hoje e o que motivou esta crônica foi a frase dele, ouvida por Sérgio e Marcito, num bar do Leme. É a declaração de amor mais exata que já ouvi, expressão da mais pura entrega. Enfim, em meio a uma discussão bem masculina sobre mulheres, fidelidade e amor, Antonio Carlos encerrou seus argumentos com a seguinte conclusão, se referindo a Lígia: "Esssa mulher pode tudo, só não pode é ir embora".

Não preciso dizer mais nada.