29 de outubro de 2001
Coincidência de brumas

Quando eu vi "marina" brilhando em vermelho na névoa, na névoa o amarelo piscando dos sinais na avenida vazia, o cheiro acre do mar na bruma densa de sal, as coisas todas tão sós e imóveis, as coisas tão elas, quietas, atentas, eu pensei em Hopper, na luz de Hopper, mas logo lembrei de você, Mônica, minha Marina morena dos olhos d'água, lembrei de nós, adolescentes, namorando na areia com o Dois Irmãos desenhado no fundo céu de strass e veludo. "Tudo é cinema!", você disse uma vez - e foi dos meus primeiros versos.

Éramos nós passeando o casal na névoa ou isso foi há quanto tempo, se mal faz um ano e ainda ontem, a gente passeava juntos de braços dados aconchegados de um friinho de lá então também primavera em Nova Iorque?

E logo pensei em te ligar pra te dizer que aqui havia brumas no Leblon à meia-noite feito um quadro de Hopper e te dizer que é urgente, é necessário, inadiável ir ao Moma ver Hopper - entrar naquelas salas e se banhar de luz, se sentir e ver no silêncio dessa luz capturada das coisas simplesmente sendo elas o que são: pura luz.

Mais do que nunca é necessária essa luz, Mônica - porque nem é mais o terror o que você enfrenta aí, no coração que as trevas almejam. O terror sempre teve uma face, uma causa, um prazo, um nome, uma voz. Isso que você enfrenta aí, Mônica, é o Horror - sem face, sem causa, sem prazo, sem nome, sem voz.
O Horror, o Horror, o Horror.

Mas de Conrad eu prefiro outra frase: "Vivemos como sonhamos, sós". Que, aliás, seria bela epígrafe para a obra de Hopper.

Hopper, Pollock, Calder, Man Ray. Henry Miller, Ginsberg, Cage. Milles e o Jazz. O cinema: Beleza Americana e Além da Linha Vermelha. Muhummad Ali, Michel Jordan - e vá você dizendo os seus, , assim de cara, num quiz de chofre... Os seus americanos. Todo mundo tem os seus. Eu podia citar mais um monte. Eles são o meu mundo - e o seu, Mônica. E eu não quero que o meu mundo acabe.

A América do meu mundo é a terra do eu - essa invenção nossa tão frágil e tão recente. Do Eu. Livre e Igual. A mim pouco importa se a Utopia não se cumpriu à risca. Eu sei é que lá está no papel, eu sei é que está na gênese da América ser o lugar onde você chega deixando para trás a História e se inaugura novo, outro.

A América pra mim é Pollock dançando um acting painting, é Jordan parando no ar feito um colibri, é qualquer solo de Miles. E a América é também o teu amor a Nova Iorque, eu te saber aí, Nova Iorque um pouco bairro do Rio na geografia íntima dos meus afetos.

E nem pensava mais em ligar, satisfeito em apenas te escrever uma crônica contando das brumas do Leblon à noite, tentando fazer um canto à América que seria um Whitman em Pessoa.

Enfim, já resignado ao princípio de realidade que são as contas do mês, mas ainda insatisifeito com meu texto, dou uma passada na casa de seu irmão e quem encontro? Você! No telefone com ele.

E aí, finalmente, sem querer, falamos. Falamos de perder a conta, a voz tão perto que é quase a luz dos teus olhos, Nova Iorque ali, um bairro do Rio. Falamos, falamos - mas onde eu me senti mais íntimo e secreto foi em saber que também aí a bruma envolve a cidade, feliz coincidência que se dá no silêncio, no silêncio dos quadros de Hopper.