8 de julho de 2002
Astronautas

As tirinhas de plástico verde-e-amarelo-azul-e-branco ainda tremulam no céu da rua, desbotadas e exaustas. Cumpriram seu papel de representar nossos melhores sonhos.

Falou-se muito do acerto de contas entre Felipão e a imprensa, mas ainda não se disse uma palavra sobre essa garotada que, mesmo desembalada por prognósticos nada animadores, teve disposição para enfeitar as ruas em jornadas noturnas e quase silenciosas, indiferentes à descrença dos adultos.

Fizeram desenhos nas paredes e no chão, estenderam no alto esse falso céu multicor que nos obrigava à esperança mais deslavada. Antes, quando o certo era crer que não iríamos longe nessa Copa (então por que perder tempo enfeitando ruas?), foi a obstinação quase obtusa (ou genuína fé) dessa garotada que nos salvou do vexame de acabarmos pentacampeões de ruas frias e perplexas do seu próprio êxito.

E foi essa garotada que lotou as ruas para receber os jogadores como se fossem astronautas recém-chegados da Lua. Cafu, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho, Gilberto, Klerberson - todos também meninos ou quase isso - eles foram os astronautas que nos levaram à Lua pela quinta vez. Mereciam mesmo ser recebidos como heróis.

São heróis porque, como em sua saga, eles souberam superar seus próprios limites para alcançar o inesperado. Mais: como todo herói, souberam somar ao que de si ainda não tinham de pleno, a própria sorte e o erro alheio. Superação, sorte e sagacidade - eis uma fórmula possível do heroísmo.

Pouca gente entende que cada Copa do Mundo é uma epopéia de proporções olímpicas. Uma guerra, enfim. Dizer que o Brasil foi favorecido nesta Copa é supor que alguma outra Copa tenha sido limpa. Em todas as Copas houve golpes de bastidor. Mas todas inegavelmente foram de fato vencidas por heróis dentro de campo. Os cartolas mexem seus pauzinhos sempre, mas no campo, na hora, na bola, quem corre atrás é o craque. Que falha ou acerta, se supera ou medra, que vence ou perde - mas sempre heroicamente.

O juiz pode estar comprado e dar um pênalti que não houve. Mas sempre será preciso que a perna não trema na hora de bater e que do outro lado o goleiro não pegue.

Enfim, a despeito dos homens, há os deuses do futebol. Sem demérito para Deus. Quer sejam anjos, arcanjos, orixás, ou a reunião dos espíritos de todos os craques anônimos e famosos - não importa: há os deuses e são eles que sussurram ao ouvido de Ronaldinho "É agora! Levanta-te, toma aquela bola e parte para o gol". E Ronaldinho, de estatelado no chão, ergue-se como um raio, avança contra o zagueiro que já partia triunfante como um estandarte germânico, toma-lhe a bola, gira para livrar-se de outro zagueiro, passa para Rivaldo e continua correndo, acompanhando a jogada como se certo do rebote que viria quando Kahan batesse roupa, como se já soubesse que o destino daquela bola era voltar a seus pés para então ir tocada por eles aninhar-se na rede - e tudo isso acontecendo em inesperados segundos, átimo que se esculpe para sempre no mármore da memória de uma geração inteira.

Do chão vexaminoso ao gol triunfal em coisa de instantes, Ronaldinho sabia, sem a ilusória interseção das palavras, que ali era a hora, que ali era o agora-para-sempre que cria a história e o mito.

Torno a dizer: há os deuses e é por meio dos homens que o sabemos. Um gol desses é uma prova teológica.

Reparo da janela que, tão silenciosamente como subiram aos céus, começam a descer as tirinhas de plástico coloridas - que a partir de agora chamarei de flâmulas, um merecido nome lindo para elas. A garotada despe a rua de suas flâmulas com todo o cuidado - vai guardá-las para uma próxima festa.