13 de maio de 2002
Os bigodes de Nietzsche

Como ando apaixonado por Nietzsche, fui ver o filme do Bressane. Mas aquilo não é um filme, é um instrumento de medição. O mais preciso que conheço no momento para apontar idiotas. O funcionamento é simples: basta expor o sujeito ao filme pelo tempo que ele suportar. Se ao fim ele disser que gostou ou entendeu, trata-se de um idiota completo.

E o leitor não substime a importância do instrumento, sua função didática. Ele permite, por exemplo, localizar uma infinidade de idiotas espalhados pelos jornais. Li ao menos uma crítica e o rapaz só não aplaudiu de quatro porque é tecnicamente inviável. Como sempre, quando se trata de opinões idiotas, a delícia é a explicação. Mas não vou reproduzi-la aqui. Meu assunto é o filme.

E o filme não é nada. Não tem sequer a velocidade de um vídeoclipe metafísico que reproduzisse a presumida cabeça a mil de alguém prestes a enlouquecer. Não, o Nietzsche de Bressane enlouquece com a discrição de um funcionário público. A julgar pelo andamento do filme diria-se que Nietzsche ficou maluco de tédio.

O tempo todo o que se tem é isso: textos de Nietzsche sendo lidos em off e longas cenas completamente irrelevantes e aleatórias. As cenas, lentas e inócuas, nada informam, nada acrescentam. O filme teria sido um excelente programa de rádio - e isto resume tudo. O filme de Bressane é um programa de rádio com imagens. Um programa de rádio com texto de Nietzsche e música de Wagner, Bizet e do próprio Nietzsche.

Mas não é isso que me incomoda no filme. Todo mundo erra de vez em quando. E Bressane faz um tipo de cinema que se expõe muito mais ao erro. Um cinema experimental que a mim, aliás, é antecipadamente simpático. E, de fato, fui ao cinema decidido a gostar do filme. E saí decidido a esquecê-lo. A fingir que não vi para não ter de comentar. Além do respeito por quem se arrisca a tentar o incomum havia também a simpatia pela carioquíssima figura de Julio Bressane.
Foi só quando li que o filme levara um milhão de reais da Prefeitura do Rio para ser realizado é que fui tomado pela indignação que escorre destas linhas.

Acho que é muito dinheiro para o filme que é. Tecnicamente trata-se de um filme de uma pobreza franciscana, artesanal e humílimo. O espectador sai do cinema quase aos prantos, certo de que Bressane para realizá-lo teve de rodar rifa de relógio, empenhar as jóias da família, pedir dinheiro aos amigos...

Não há um diálogos. Não há som direto. Não há figurino. Não há roteiro. Não há trilha sonora. Não há cenário. Quase se poderia dizer que não há atores. São seis, ao todo. Sete, se contarmos uma gostosa que aparece nua de relance no papel de ninfa. Não dizem uma palavra, não vivem um mísero segundo de tensão dramática, nem sequer trocam de roupa. Paulo José, Mariana Ximenes, a filha da Angela Leal e uma senhora que não sei o nome fazem a família que hospeda Nietzsche em Turim. Há um conhecidíssimo boêmio carioca no papel do alfaiate. E há o ator que faz os bigodes de Nietzsche. Porque a verdade é que, com aqueles bigodes, Nietzsche é irrepresentável. O máximo que um ator consegue é fazer os bigodes de Nietzsche.

Mas é o tipo do papel que pinga no currículo do ator como um aposto:"Ah! E fui os bigodes de Nietzsche num filme do Bressane". Pega bem... Pode até render um papel numa novela, se o diretor for daqueles que acreditariam que Nietzsche não cobrou nada pelo texto do filme (nem Wagner, em Bizet...).

No entanto, o filme consumiu um milhão de reais dados pelo prefeitura do Rio - provavelmente no tempo da administração de Luis Paulo Conde. Um milhão. Pelo menos foi o que li. É escandaloso.

A aura de "experimentação" se dissolve sob a suspeita de picaretagem pura e simples. O filme revela-se longo não por uma questão estética, mas pela cínica necessidade de maquiar custos. É uma suspeita. Grave. Teria rendido uma matéria melhor do que qualquer das tentativas (incompetentes) de se escrever a crítica favorável de um filme medíocre.