14 de janeiro de 2002
Festa de Iemanjá

Uma semana e o cotidiano já vai se acomodando ao calendário: 2002 não é mais o ano novo, mas de novo mais um ano. Eu, no entanto, ainda penso no réveillon.

No dia 30 de dezembro, levei uma amiga polonesa para passear na Urca. De noitinha, quando ela viu as celebrações antecipadas à Iemanjá na pequena praia nos fundos do Cassino - o branco do linho contrastando com o branco da areia iluminada pelas velas, os corpos animados pelo batuque lento, a cantoria, as muitas flores espalhadas - ela quis descer e ver de perto. Havia duas giras grandes, organizadas por centros, e vários devotos que, individualmente ou em grupos familiares, levavam suas oferendas. Champanhes estouravam e barquinhos eram lançados ao mar com perfumes, velas, flores, espelhos, pentes e outros presentes feitos para agradar uma mulher. Era tudo tão delicado e feminino, com o negrume do mar a lamber as marcas de nossos pés na areia, como se dissesse: "Tudo é transitório".

Magdalena nunca tinha visto algo assim: um ritual religioso ao ar livre e coletivo, mas realizado sem a coordenação centralizadora da Igreja ou do Estado. Eu mesmo, fazia tempo que não assistia tão de perto a uma festa de Iemanjá, eu que já tirara daí meu ganha-pão, nos tempos em que meu pai tinha uma loja de artigos religiosos e de umbanda. Nos dias 30 e 31 de dezembro, gente fazia fila na porta para comprar oferendas. Nós trabalhávamos direto, eu, meu pai, minha mãe e o Walter, o rapaz que ajudava meu pai e já se tornara da família. Almoçavámos na loja, um a um, e na hora de fechar era sempre um sufoco.

Fazia tempo que eu não ouvia os pontos e via esses pequenos objetos tão singelos que o carioca oferece a Iemanjá todos os anos: miudezas baratas, bobagens de mulher, objetos de toucador! Pentes, perfumes, fitas, pó de arroz! - a deusa é mulher e vaidosa. E mulher, deusa ou não, gosta de enfeite, perfume, promessa.

Os franceses falam La Mer, no feminino. Pois, para nós, cariocas e brasileiros, o mar também é feminino - a despeito das imposições da gramática. Para nós, o mar é uma mulher, água regida pela Lua, poderosa e humana.

No dia 31, fui ver os fogos. Magdalena imaginava encontrar em Copacabana o mesmo espírito ritual da noite anterior, alegre e reverente. Eu não. Eu fui ver os fogos. Iemanjá tornou-se um aspecto secundário e, quem sabe, incômodo, na tradicional queima de dotações orçamentárias e verbas públicas que ocorrem todo fim de ano, com seus imensos palcos erguidos sobre caixas 2 tomando a praia. Quase não dá mais pra se chegar no mar - nem as velas e os batuques podem competir com o abuso de luz e som promovidos por um mau-gosto que só não é maior do que a ganância que o move.

Quanto custa isto? Silêncio sepulcral. Nenhuma palavra. A única vez em que a imprensa mexeu nesse assunto foi quando a mulher do Paulinho da Viola botou a boca no trombone: muito terno branco saiu respingado de lama.

Alguém precisa contar ao prefeito que o carioca ama o mar. Se fosse em francês, se diria: o carioca ama a mar. Enfim, digamos: o carioca ama amar o mar. Talvez seja nossa verdadeira religião. Não sei o quanto o culto é antigo, mas desde Garota de Ipanema que sabemos como é o paraíso que desejamos.

Tudo bem, o prefeito é um césar maia - figura carnavalesca, saída de uma versão internacional do Samba do Crioulo Doido (Mad Black Samba), sempre disposto a cometer sandices. Agora, por exemplo, diz que vai processar um meteorologista porque anunciou a possibilidade de chuvas que não vieram. Só falta cancelar a festa de São Pedro.

De qualquer modo, alguém tinha que avisar ao prefeito... Avisar que, no dia 31 de dezembro, as areias do Rio são sagradas. Alguém tem que explicar pra ele - mas não pode ser seu secretário de Turismo, que acredita que o tal meteorologista fazia parte de uma conspiração - contar, de forma bem didática, que carioca quando morre não vai pro Céu nem pro Inferno. Carioca quando morre vai pra praia. Mas só para os bons haverá sombra e água de côco. Que o prefeito pense nisso ao "organizar" o próximo fim de ano.