18 de fevereiro de 2002
Anticarnaval

O Carnaval é uma redundância. Um redundante desfile de redundâncias. Há a redundância dos corpos: bundas, seios, pernas sempre iguais - como se o Albieri não tivesse clonado só a Roseana Collor e o Murílio Benício mas uma escola de samba inteira.

Eu disse corpos? Mas não há corpos. O que há são membros e órgãos redundantemente expostos, pedaços de carne untados de óleo reluzente que se movem iguais e sem ritmo. Mulheres-bundas, mulheres-peitos, mulheres-pernas, mulheres-bocas. Mas, como no açougue, a soma das partes exibidas não chega a constituir um corpo inteiro

Mulheres-nada feito essas estátuas de jardim de que se apagou pudicamente a vagina (com o perdão do neologismo). Sim, leitor, os carnavalescos inventaram a mulher sem vagina. Onde está a vagina da Globeleza, por exemplo? Procure. A moça está nua. Nua, nua - mas não se vê nem traço, nem sombra da vagina... Sumiu! É a encarnação apoteótica da histeria clássica que, livre da vagina, rebola freneticamente para uma platéia de onanistas. Criação que já faz parte dos anais da nossa história (com o perdão do trocadilho).

Há a redundância dos sorrisos iguais. O mesmo sorriso patético de burrice triunfante estampado nas mesmas caras que repetem as mesmas respostas para as mesmas perguntas com uma precisão anual, patológica e aterradora. Largos e inexpressivos sorrisos trincados de cocaína malhada. Um redundante desfile de amebas sorridentes. Sem cérebro e sem vagina, a impressão que tenho é que a próxima geração já virá com rabo e penacho de plumas. Bípedes emplumados - como galinhas. Galinhas sorridentes.

Há a redundância dos sambas. O mesmo ritmo, as mesmas letras sem pé nem cabeça. Difícil escolher o Samba do Crioulo Doido do Ano. Meu voto fica com a Caprichosos de Pilares, talvez apenas porque mais ridículo do que um gaúcho de bombachas só um carioca fantasiado de malandro.

Há a redundância das escolas. As mesmas plumas se arrastando monótonas e apressadas de um lado para o outro na avenida, avidamente em busca de uma câmera que lhes registre o sorriso - o tal sorriso da burrice triunfante.
Salvo por um detalhe ou outro é sempre a mesma escola que desfila ao som do mesmo samba. São deste ano, do ano passado, do retrasado esse som e essas imagens? E quem se importa? Que diferença faz? Não há mais sequer a identidade das cores que antes distinguia as escolas.

Rio, São Paulo, Salvador é tudo a mesma coisa: os negros batucam, brancos e mulatos rebolam e os sinhozinhos e seus prepostos assistem e distribuem notas. É assim o ano inteiro há quinhentos anos.

O leitor duvida ou acha que exagero? Pois não havia um preto retinto entre os jurados das escolas do Rio. No máximo, um ou outro mulato. Mas, preto-preto, nenhum.

E há a redundância principal dos quatro dias de Carnaval num país que já passa o ano inteiro assistindo mulheres seminuas rebolando ao som de sambinhas sempre iguais. Então pra quê mais quatro dias?

Proponho que se institua o anticarnaval. Quatro dias em que os brasileiros se dedicariam a fazer redentoramente nada. Nada. No máximo, iriam à praia e no fim da tarde beberiam uma cervejinha à sombra, só uma, para, quem sabe, numa suprema transgressão, cantarolar baixinho alguma marchinha antiga.

Quatro dias em que os brasileiros se aplicariam a usufruir da verdadeira e única liberdade - que é a liberdade de não fazer nada. A liberdade de não ser ninguém e nada desejar além do sorriso sincero e o corpo, o corpo!, da mulher amada.
Quatro dias em que ninguém trabalharia. Quatro dias sem câmeras, sem jornais, sem tv - em que todos seriam apenas gente, anônima e feliz. Quatro dias, só quatro dias, de vida genuína, de amor genuíno, de sexo genuíno. Sem barulho, sem exibição, sem alarde.

Falei da redundância e ia esquecendo da contradição. George Bush declara guerra ao terrorismo e ao crime organizado e sua mãe se esbalda numa festa notoriamente patrocinada por quem? O ano inteiro as autoridades federais, estaduais, municipais e internacionais falam em combater a violência e o crime organizado. Chega o carnaval e o que se vê? O prefeito em sua fantasia de césar maia trocando salamaleques com quem?

Falei em contradição, mas, pensando bem, talvez seja só mais uma redundância: no fundo, são todos iguais.