18 de março de 2002
O amor e o absurdo

Estou para contar a história de amor de Samuel Beckett e sua mulher Suzanne faz tempo. Eu a li outro dia em uma revista de sala de espera e fiquei encantado. Toda história de amor, mesmo a mais simples, tem sua graça porque todas vêm marcadas com o selo da fatalidade e do acaso, do "amor à primeira vista", do "para sempre, desde sempre, desde antes de mim". Acredito até que é da lembrança do começo que se alimenta o amor, quando força lhe falta para seguir.

Bom, mas eu falava de Beckett... Como se sabe, o autor de Esperando Godot era um sujeito taciturno e arredio. Costumava dizer, um pouco por deboche da legenda que se tornara, que preferia ter vivido na escuridão e no silêncio de uma caverna no fundo de um abismo. Inegável, no entanto, que a solidão é seu tema. A solidão como consequência da liberdade a que estamos condenados. Liberdade tão radical que exclui qualquer ilusão de sentido. A vida é livre, por isso não tem sentido ou seu sentido esgota-se no ato simples de manter-se vivo.

Em face dessa percepção, só há extremos: o êxtase ou o horror. Para nos mantermos imunes a um e outro criamos uma rede de regularidades, repetições, regras e uma porção de outras palavras começadas com re, que produzam a ilusão de um sentido. Rompida a rede, restarão farrapos de sentido, memórias incertas de instantes fugidios. E é só. Acho que isso resume o clima Beckett. Agora, os detalhes plásticos.

Desde garoto, Beckett gostava de ficar mais do que quieto, imóvel, fechado em si mesmo, entregue a longuíssimos silêncios. Irlandês de Dublin, assim que pôde, foi morar em Paris. Adotou o francês como idioma e seu primeiro texto conhecido - superesa!? - foi uma monografia sobre o tempo em Descartes. Enfim, exilado de sua terra e de sua língua, Beckett já era um escritor, mas ainda não era Beckett, quando o fato que desencadeia sua história de amor aconteceu.

Uma noite qualquer, que não nos custa imaginar fria e chuvosa, Beckett voltava para casa pelas vielas incertas de Paris, quando foi abordado por um clouchard, um desses míticos mendigos parisienses que perduram até hoje como uma espécie de confraria secreta.

O mendigo pediu-lhe dinheiro. Se Beckett respondeu com um não ou com silêncio não há registro. Certo é que o mendigo retrucou à recusa com uma facada que atingiu Beckett no pulmão. Podemos presumir que o alvo era seu coração e quase podemos ver o punhal de aço reluzente cortando a noite para tingir de vermelho a paisagem cinzenta de Paris.

Beckett cai e o vagabundo foge. O sangue se esvai, é doloroso respirar. Beckett sente que vai morrer. E morreria se uma moça não surgisse do nada em sua bicicleta e o socorresse. Essa moça é Suzanne. De novo, não nos custa imaginar Suzanne no chão com Beckett aconchegado em seu colo enquanto aguardam a chegada da ambulância. Suzanne sente o sangue de Beckett em suas mãos e tenta devolver-lhe com o corpo o calor que dele escapa. Que Beckett a imagine um anjo e já nem sinta dor mas uma espécie de manso prazer é algo plausível que terá explicações biológicas - em estados de dor extrema o corpo produz uma espécie de morfina que induz a mente a um alheamento delirante - mas a cena é sobretudo romântica e heróica. Não sabem ainda, mas já estão apaixonados. Beckett já sairá do hospital casado para sempre.

Mas todo tempo, uma pergunta o aturdia: "Por quê?". Beckett foi visitar o mendigo na cadeia para perguntar porque, afinal, ele o esfaqueara. "Não sei". A resposta soou para Beckett como uma iluminação. Um koan que calava o vetusto "Por quê?" com um "E daí?" triunfal. Sem aquele homem jamais haveria Suzanne.

Numa mesma noite, no limite extremo entre a vida e a morte, Beckett descobrira o amor e o absurdo. Naquela noite, Beckett finalmente nascera.