23 de junho de 2003
Consistência

Parecia que, depois de um violento surto que durou mais de dois anos, a palavra "consistência" tinha sido erradicada do vocabulário jornalístico. Não pela ação de algum Oswaldo Cruz semântico, mas pela simples produção de anticorpos. Mas a praga voltou a abater textos sem piedade.

Subitamente, redescobriu-se que tudo, rigorosamente tudo, pode ser consistente: de jogos do Flamengo a peças de teatro, de políticas econômicas a discursos presidenciais, de relações amorosas a solos de guitarra. Em plena era da imaterialidade digital, a redescoberta da "consistência" talvez revele um certo sentido nostálgico. Ou talvez seja um ato falho denunciador de alguma disfunção erétil. Sei lá... A verdade é que seu uso indiscriminado é... inconsistente.

O conceito de consistência tem sua origem na lógica, e tornou-se quase um jargão da filosofia da linguagem. Historiar sua origem seria tedioso, mas não é dificil explicar sua aplicação. Qual o critério de verdade do senso comum? Acertou quem disse "os sentidos". É ver, para crer - certo? Mas, "as aparências enganam". Por melhor que seja a visão ninguém está isento de dar com a cara no blindex da portaria.

Essa relação entre sentidos e realidade é o fundamento da "correspondência" como critério de verdade. Grosso modo, a coisa funciona assim: a cada palavra um objeto, a cada frase um fato. Quanto às falhas dos sentidos, se não nos matam, acabam por nos tornar mais espertos.

O problema é que a filosofia abusa das generalizações. Da óbvia constatação de que os sentidos são falíveis, salta-se para a aterradora (e indevida) conclusão de que entre a consciência e o mundo há uma "diferença" irremediável e que, portanto, entre isto que sentimos e a "coisa em si" não existe nenhuma relação de verdade.

Um "falso problema" clássico, que opõe "realistas" e "idealistas" e tem garantido bolsas para estudantes e professores desde que a filosofia se profissionalizou como um ramo do funcionalismo público. O problema real é que, neste caso, a correspondência se reduz a mera ilusão e o que resta é buscar o critério de verdade na "consistência interna" dos discursos.

Todo este papo é suficiente para mostrar que a aplicação do termo "consistência" a objetos sensíveis ou eventos mundanos é uma tolice.

Pode-se (e deve-se!) analisar a consistência de qualquer cadeia de argumentos, seja uma equação da física, seja o discurso de um ministro. Mas nenhum nem um, nem outro tornam-se por isso imunes a "testes empíricos" que lhes atestem a validade. Por isso, dizer que o Flamengo apresentou um jogo consistente é dose! Consistente com o quê? Com a Teoria de Parreira-Luxemburgo da Distribuição de Zagueiros em Momentos de Placar Adverso?

Desconfio que a sindrome da consistência adquirida coincide com a ascensão do neoliberalismo. Dos anos noventa em diante, a crescente hegemonia do capital financeiro e o capital produtivo, produziu uma espécie de "descolamento" entre teoria e realidade. Em outras palavras, passou-se a valorizar mais a teoria em si do que seus efeitos.

Não é preciso ir muito longe para se constatar o fenômeno. Bastar ouvir Dom Henrique Mereilees, o Venturoso ou o Dr. Antonio Pangloss falarem sobre a economia brasileira para perceber que lhes importa mais a "consistência da política econômica" do que sua correspondência, vale dizer, seus efeitos, reais.

O que torna revoltante, além de estúpido, a adoção indiscriminada do termo no jornalismo é que, por dever de profissão, não deveria haver ninguém mais apegado aos fatos do que o repórter. Sob o signo da consistência, a economia torna-se um problema de economista, a política, um problema de políticos, a arte, um problema de artistas. E por aí vai...

Resultado: O repórter torna-se um mero porta-voz de releases e comunicados, um menino de recados com direito a cestinhas de Natal no fim do ano e uma ou outra "inside information" que lhe aumente os rendimentos.

Pelo sim, pelo não, o melhor é deixar que a "consistência" retorne às páginas de culinária, de onde jamais devia ter saído.