7 de julho de 2003
O elogio do cochilo

Fui almoçar na casa de minha mãe no sábado. Cheguei de repente, mas mãe é mãe e rolou filé com purê de batatas feito no carinho do improviso enquanto eu lia o jornal e trocava uma idéia com ela. Comi como gosto: devagar e lendo. Sou do tipo que lê bula de remédio na mesa - ou o que estiver à mão. Ou melhor, lia: não enxergo mais as letrinhas miúdas sem óculos. De fato, o único aspecto lamentável do passar dos anos. Ou, ao menos para mim, o mais "visível". É um saco. O leitor já deve ter reparado que também sou um leitor no sentido amplo do termo. Leio tudo: nuvens, pedras, água, estrelas,textos, fisionomias, livros, jornais, bulas de remédio, e-mails, notas, matérias - e tudo que leio interpreto, corrijo, acrescento, discordo, nego, comento, elogio - em novas palavras que se oferecem aos olhos de todos e aos meus - num ciclo que eu diria mesmo incessante.

O mundo, enfim, aos meus olhos, parece todo escrito. Um livro sempre aberto se oferecendo à leitura. E ainda que beleza seja "questão de gosto", o "fato estético", a eleição de algum Belo que seja, sempre há onde houver gente.

Então essa limitação do alcance da vista (eu que sempre tive, e admiro quem tem, "olhos de lince"), essa limitação de ler letras miúdas me incomoda muito. È como se me roubassem as entrelinhas ou eu tivesse de usar a máscara dos óculos para lê-las.

Mas jornal em corpo 11 ainda agüento ler na boa. Fui comendo e lendo. Passeando os olhos pelas matérias - selecionando o que ler, depois, no café. Foi nesse momento, depois do café, lendo mais em profundidade o jornal, que me bateu o sono. Há na casa de minha mãe um sofá de três lugares e molas inglesas que é um convite ao sono. Para ser preciso: à soneca. Aquela que você tira de barriga virada pra cima, as pernas esticadas, os dedos cruzados sobre o ventre - e que certamente levou Machado a dizer que dormir era uma forma interina de morrer. Essas sonecas são mesmo apagamentos fulminantes, que duram às vezes meia hora mas passam como se fossem horas, e você acorda inteiro, novo, descansado.

Já tirei sonecas em igrejas, ônibus, trens, parques, no trabalho. Os espanhóis cultivam a sesta. O brasileiro deveria cultivar o hábito da soneca anárquica, fora de hora, como uma religião, uma derivação do tal jeitinho carioca.

Nesse sofá então, gerações de Antonio Caetano morreram interinamente depois do almoço. Não havia como resistir. Deitei. Minha mãe me trouxe travesseiro e coberta (mãe é mãe). Dormi. Um vizinho estava escutando Chico Buarque. Na casa dele até devia estar alto, mas na minha o som chegava na medida certa. Ficamos os dois satisfeitos. Chico foi me embalando o sonho. Não sei quanto tempo dormi, mas lembro muito bem que dormi com "Meu Guri" e acordei com "Cálice". Entre uma outra, guardei fragmentos de diversas músicas, e pessoas muito, muito amigas, iam passando aos meus olhos, dessas pessoas que atravessam com você da adolescência à vida adulta, os teus íntimos. E cada música era um, e cada um eram vários. Fora as paisagens, os lugares. Tudo misturado, como quem passasse sem pressa um álbum de retratos. Só que dormindo. Ou melhor, cochilando. A mente só passeando pela memória, sem a dramaticidade dos sonhos que só se tem dormindo.

Acordei novo, feliz de rever amigos e amores, meu álbum particular de retratos e trilhas sonoras. Fragmentos do meu filme. Acordei novo, feliz e certo de que é preciso institucionalizar a soneca. O cochilo. Eu, pelo menos, troco meus quinze minutos de fama internacional por quinze minutos diários de discreta soneca. Cochilar é um direito inalienável. Já a fama deve ser a abolição do sossego.