14 de julho de 2003
Divisão das cobertas

O inverno finalmente chegou ao Rio. Para compensar as quase três semanas de atraso, chegou violento, ao menos em termos cariocas. E trouxe com ele um velho problema, universal e insolúvel: a divisão das cobertas.

Os solteiros obviamente não têm com o que se preocupar e os casais mais antigos já encontraram alguma fórmula para contornar o problema, seja comprando cobertas individuais, seja resignando-se à impossibilidade de qualquer outra solução definitiva - uma vez que a compra de cobertas individuais quase sempre encontra forte oposição feminina.

A divisão das cobertas em noites de frio é, portanto, um problema dos casais recentes. Pode-se dizer que é o primeiro problema sério que enfrentam, porque se trata de uma questão inegociável em palavras.

De nada adianta combinar que hoje você não irá enrolar-se todo no cobertor, como uma borboleta em seu casulo, deixando ao outro apenas o lençol fininho como única proteção contra o frio. Não é uma decisão consciente ou mesmo inconsciente: nem Freud explica ou cura esses surtos de egoísmo instintivo. É coisa que vem lá do fundo, do tal "cerne animal" que também nos constitui - e que, no escuro do quarto e da consciência, sente-se à vontade para fazer a festa.

Em geral, os homens levam certa vantagem sobre as mulheres nessa luta cega que se trava em quase todas as camas do mundo nas noites de inverno. Mas a superioridade masculina é relativa, porque não se trata apenas de força, mas também de habilidade. No fim das contas, os dois oponentes se igualam e o pé gelado de um se vinga no nariz descoberto do outro.

Claro, há momentos - e até noites inteiras - de fabulosos encaixes dos corpos encolhidos para caberem juntos sob o cobertor "de casal", nome genérico que se dá à simples duplicação do cobertor "de solteiro".

Ora, apesar da rima, os casais não são iguais. E, sobretudo, um casal não é jamais a soma de dois solteiros. Se uma pessoa pode literalmente se virar com um lençol ou cobertor de solteiro, isso não significa que duas pessoas possam sequer se mexer sob um lençol ou cobertor de casal.

Para encurtar o raciocínio e fechar a conta, eu diria que qualquer coisa "de casal" deveria equivaler a três "de solteiro" para garantir a harmonia térmica dos casais em noites de frio. Senão, o que se tem é essa sucessão de puxões, pontapés, abraços e empurrões na disputa por alguns centímetros a mais de coberta.

Que eu saiba, nenhum desses pesquisadores americanos que se dedicam a cruzar dados aparentemente sem pé nem cabeça se preocupou em estabelecer uma relação entre o tamanho das cobertas e o índice de divórcios nos países frios. "Mãos frias, coração quente"? Pode até ser... Mas nunca se contabilizou a quantidade de rancor e mágoa que um pé gelado pode acumular por noites a fio descoberto.

E como se não bastasse, criou-se uma espécie de "mitologia negativa" que só faz colocar mais lenha na fogueira (o lugar-comum é só para aquecer um pouco esta crônica). Por exemplo, é "feio" homem dormir de meias, sabe-se lá porquê. O que bem poderia ser uma solução paliativa é vetado por um preconceito bobo e inexplicável. Pé não tem sexo, ainda mais com frio - apesar das óbvias diferenças entre um pé masculino e feminino.

Tudo isso só reforça as teorias conspiratórias que afirmam existir um complô armado contra a idéia de família. Nunca acreditei nessas coisas, mas, agora, juntando tudo - cobertores "de casal" curtos, veto às meias, índices de divórcio - já chego a sonhar com uma bolsa de pesquisa milionária em alguma universidade americana para comprovar a tese. Sonhar? Só se conseguir dormir com meu pé descoberto e sem meias.