20 de outubro de 2003
O futuro é um furto

A verdade é que de fato temos consciência de que só existe o presente. O problema é que sobre esse chão não se constrói uma ética. Então é preciso inventar um futuro. E acreditar nele. Recalcar essa consciência de que só o presente existe e que tudo mais são promessas. Promessas - uma verdade adiada, uma mentira de pernas curtas, uma bomba-relógio. Tudo são promessas. Precisamos delas para nos livrarmos do presente, dessa consciência de que só ele existe.

Consciência? melhor dizer "sentimento". Porque o sentimento é íntimo e silencioso. Já a consciência é algo mais público, mais discursivo, algo que se sabe dizer, que pode ser expresso em palavras, publicado, discutido. Por isso, para cada uma vez que se ouve falar "presente", cem vezes se ouvirá a palavra "futuro".

Porque é exatamente o contrário. Os donos do poder não querem que o sentimento de que só o presente existe se transforme em consciência. Quem vai comprar seus produtos? Quem vai pagar as prestações? Quem vai acreditar em propaganda? Quem vai manter acesa a ambição? "Você é um jovem de futuro, meu rapaz". Não, não... A sociedade, a civilização, a cultura se fundam sobre a crença no futuro. Que é sempre um "upgrade" do passado. Um "patch" que incorpora a contragosto algumas novidades imprevistas. Passado e futuro: vive-se do passado e para o futuro - e salta-se o presente.

Por isso, o futuro é já o furto do presente. É só "roubar" uma letra e lá está "a verdade com todas as letras" que sobram: o futuro é um furto. Mas o sentimento de que só o presente existe está lá, fixo e pulsante, como o coração. Entã é preciso dar-lhe outro nome. Sim, claro, "consciência da morte". Claro! "O homem é o único ser que tem consciência da morte". Quantas vezes ouvimos essa babaquice em suas diversas versões...

"Não pensem na morte! Que morbido! Pensem na vida, no futuro!", eles dizem e nos prometem um outro futuro - sem morte. Porque a morte está no presente - eles dizem. É no presente que se morre, segundo a segundo, secretamente. "A morte está no presente, meu amigo. Por isso, inventamos para você o futuro! E no futuro a morte não existe! Repita comigo: o presente é morte. E saltemos, juntos, do passado para o futuro, sem a presença incômoda da morte, do presente..."

Viram? O presente sumiu na sua frente e depois apareceu na minha outra mão transformado em morte! Aplausos, por favor! Este foi um número de dialética sofisticada. Um truque fácil, na verdade. Mais fácil do que transformar uma pomba branca em lenços coloridos.

Claro, sempre é preciso uma platéia ávida por ser iludida. Mas isso é mais fácil ainda. Não se iluda: só o presente existe. A morte não é um fato da vida.