27 de outubro de 2003
O lixeiro feliz

O lixeiro vem cantando um samba na madrugada chuvosa, todo de laranja da capa que o cobre contrastante como um monge pop no asfalto da sua cor.

Vai acrescentando nobreza ao gesto que repete simples de varrer uns montinhos de lixo para dentro de uma pá e atirá-los no latão de plástico que manobra, ágil. A voz que ecoa o samba anima o corpo de leveza e olhando nem parece que ele canse, menino brincando de ser lixeiro, feliz da vida como se vadiasse.

Não distingo a letra e nem preciso, tão contente é a voz que entoa o samba, talvez de sua própria lavra, lixeiro passista disputando a primazia do enredo deste ano em algum bloco de subúrbio ... Quem sabe? "E se soubesse, o que saberia?" diria Fernando Pessoa...

Saberia, como eu sei, que o lixeiro é feliz. Porque se move assim, animado da própria voz, cheio de si, cantando seus sonhos na madrugada chuvosa.

Pois é, meu amigo Pessoa... Tu que sofreste o tormento de ser tantos, tu merecias um lixeiro assim cantando em tua rua - como também eu acho que mereço ganhar esta crônica de presente... Na rua da tabacaria não passavam lixeiros cantarolando sambas de madrugada. Isso pode ser tão triste, e ainda mais, se levas Kant muito a sério...

Imagino a rua da tabacaria muito branca e triste, sem mulatos, sem negros, sem sambas - só talvez o lamento longínquo de um fado a cantar essa nostalgia oceânica, essa tristeza funda de nunca sentir-se de todo presente, que é Pessoa e Portugal inteiro.

Intuo o peso dessa tristeza lusa nestes versos de "Tabacaria": "Come chocolates, pequena, come chocolates. Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates". Tristeza que, no entanto, se perde quando releio esses mesmos versos à brasileira.

O que quero dizer é que não me entristece saber que não existe mais metafísica no mundo do que o fato de existir e que toda grandeza reside nisso, em simplesmente existir agora, no chocolate que se come, na água que se bebe, no beijo que se dá, em tudo, enfim, que é sensível e presente.