10 de novembro de 2003
Luana Piovani e as palmeiras centenárias

Eram palmeiras que se erguiam centenárias, emoldurando o palacete art déco, espertamente demolido antes que o tombassem como memória da cidade. No seu lugar constroem um prédio.

Mas preservaram as palmeiras. Pouco a pouco, as paredes de concreto as vão ultrapassando em altura e roubando-lhes a largura das copas. As paredes sobem rentes aos troncos robustos e flexíveis que antes, em noites de muito vento como esta, faziam das palmeiras sacerdotisas em transe entoando ensandecidas o secreto cântico de suas folhas. Já não dançam. Emudeceram.

Aprisionaram as palmeiras. Tomaram delas a liberdade que era o fundamento de seu nome. Já não são palmeiras, mas natureza morta que figura a ambição dos homens que fazem prédios altos para empilhar gente.

Aprisionaram as palmeiras em vez de matá-las não porque são bons, mas para parecerem bons, pessoas incapazes de fazer mal a uma palmeira. Como a morte é certa, não serão eles a matá-las. Condenaram as palmeiras a morrer duas vezes – uma em vida, outra na morte. E a mim, feriram um pouco: as palmeiras morrerão, sim – de tristeza. Estão lá, espremidas contra o concreto, atadas uma a outra por uma corda, como escravas. Já não usufruem o vento e breve serão um estorvo na janela de algum morador.

Antes, já me haviam roubado a visão do Pão de Açúcar que sobrevivera ao cerco dos prédios. Agora, lá se vão as palmeiras... Há um Rio mítico, que nunca se acabará. Mas o meu Rio, o Rio íntimo por onde me corre a memória, vai sendo apagado, riscado do mapa, do meu mapa. Sem o mapa me tornarei – o quê? - talvez um errante estrangeiro em outros bairros e cidades, ou pior, prisioneiro de uma paisagem de palmeiras tristes, paredes lisas e prédios de janelas cegas.

Aprisionam as palmeiras e querem aprisionar Luana Piovani, talvez porque a opulência de sua beleza tenha algo de “força da natureza”. Querem que ela diga, sem desdizer-se, que não disse o que disse – artimanha de advogado para escapar da sanha vaidosa de promotores e repórteres.

É preciso ser muito estúpido ou esperto para ler na admissão de um consumo eventual de maconha, uma apologia das drogas. Apologia das drogas quem faz é anúncio de cerveja e cigarro. Basta um dicionário para não confundir declaração com apologia. Dizer que Luana é uma “pessoa pública” e, portanto, suas palavras têm outro peso é bijuteria intelectual que se compra em qualquer camelô de idéias.

“Pessoa pública” é uma contradição de termos. Pessoa é, por definição, privada, particular – numa palavra: pessoal. A tal da “imagem” é coisa de marqueteiros. Não convém à Justiça, guardiã da liberdade, estimular a mentira. Já as palavras não têm peso. Peso têm os livros – sobretudo os dicionários e os tratados de Direito.

Ainda no terreno da lógica e das definições: o consumo cria o comércio. O que cria o tráfico – ou o “comércio ilegal” – é a proibição. O tráfico depende da proibição. Os interessados em arrecadar fundos para campanhas contra a legalização das drogas devem procurar os traficantes. Serão recebidos de braços abertos por seus gerentes de marketing. Luana na entrevista não recomenda maconha a ninguém, apenas admite um consumo cuja eventualidade é difícil até de precisar.

Quando diz que há drogas nas escolas e boates apenas se confessa uma leitora atenta dos jornais e a afirmação que se pode comprar drogas a qualquer momento é conclusão dessa leitura: ninguém informado duvida de sua verdade.

Quem fez alarde da entrevista de Luana foi a “grande imprensa” - que reproduziu em manchete garrafal e tiragem de centenas de milhares o trecho de uma entrevista que não mereceu o menor destaque no jornal de três mil exemplares e circulação restrita que originalmente a publicou.

Um jornal de universitários soube dar à declaração sua verdadeira importância: nenhuma. Justamente para evitar que ela fosse tomada pelo que não é. O mesmo discernimento faltou espertamente à “grande imprensa”.

Como não fica bem a “grande imprensa” sair por aí publicando fatos sem importância em manchetes garrafais, tratou-se de se criar um caso jurídico.

A promotora navega no equívoco. O alvo de sua indignação deveria ser a “grande imprensa” e não a atriz. Se um caso existe, Luana é vítima, e não ré. Errou a promotora. Se tivesse acertado, os holofotes seriam os mesmos, mas a qualidade do texto seria outra. Já Luana, se errou, foi de advogado.