22 de dezembro de 2003
Olhar bandeirante

Gosto de te ver. Acho bonita a intensidade que você põe em tudo que faz. Você se inflama, volátil - às vezes não sem supresa, súbita até para si mesma. Mas, ao mesmo tempo, você é tão densa... Você tem silêncios e eles nunca estão vazios. Você sente, mede, pensa, se adensa, à flor da pele. E até tua voz, grave e sedosa, não destoa desses teus silêncios. T

ambém acho bonita a displicência com que você parece tratar tua beleza. Displicência medida que é uma espécie rara de elegância. É muito bom te ver. Na verdade, é a melhor parte do meu dia. Você sabe disso, não preciso dizer. Ou sou eu que me iludo, surdo, pensando que ouço teus silêncios, teus olhos, a alma que te aflora à pele, rubra?

Não me dói não ter a resposta certa deste quizz show sentimental. Fui aprendendo que este gostar é muito bom, broto de paixão que alimenta e não dói, bonsai que também pode dar em árvore. Uma vez entrevistei Mario Quintana e ele me disse que o fundamental era estar apaixonado sempre - nem importa se o outro sabe ou retribui. O que importa é estar amando. Custei a entender isso... Custei a entender o que ensina Ary Barroso: "a vida é uma escola em que a gente precisa aprender a ciência de viver pra não sofrer." Difícil... Por isso, até acredito em reencarnação..

Gaivotas passam bem perto da minha janela, tão baixo está o céu neste fim de tarde chuvoso. Formam um pequeno grupo que enfrenta a bruta muralha de ar com um vôo econômico, de poucos gestos muito exatos, que quer poupar cada grama de energia navegando as correntes invisíveis do vento. Queria entender mais de gaivotas... Todos os dias elas passam por aqui, raramente tão baixo ou em grupos tão pequenos, é verdade, mas passam todos os dias, de manhã bem cedo e no fim da tarde. São meus animais, domésticos e livres. Qualquer dia, dou uma de doido e fico na janela sacudindo sardinhas para ver se alguma se enturma e fazemos disso um longa história.

Você tem alguma coisa de gaivota? Tem. Se eu quiser, agora você tem. Tem, sim... Posso até ver você planando, os braços em ãngulo, bem ali, na minha janela... Que outros bichos te habitam? De gato eu já sei que você tem muito. Isso talvez logo se veja, ou talvez seja muita pretensão minha, mas desde a primeira vez era um gato que eu via nos teus passos e gestos.

Gata, sim. Gaivota-gata-bonsai. Pensar em você me distrai. Já disse: estar com você, pensar em você são os melhores momentos do meu dia, quase todo vendido a preço vil e mal pago. Reparo que já é noite: agora são as nuvens que me lembram você... E se você fosse uma ilha? Teria eu o mapa - do céu, do mar, dos ventos? Meu olhar, você sabe, te detalha, bandeirante cobiçoso se aventurando longe. Meu olhar, máquina de ver, vai fotografando tudo: lábios moventes e lóbulos imóveis; dobras, reentrâncias e súbitas covinhas, errante assim às vezes só porque receoso de te fixar nos olhos...

Meu olhar, sonso sonar, vai adivinhando o que não pode ver... Meu olhar, meu olhar de poeta, que talvez nem saiba o que vê, sonha acordado com você.