9 de fevereiro de 2004
Espelho, espelho meu

Carlos gosta de ver Alessandra se vestir. Gosta de vê-la, nua, ir se vestindo: a facilidade espontânea dos gestos, a elegância do corpo esguio, exato... Ele ama esse corpo e o brilho que vê nele é o mesmo que sente na ponta dos dedos, nas mãos, na pele, quando o toca. Aquele corpo é seu, ele sente - e duvida: prefere fazer disso uma imagem, uma metáfora, um motivo de tormento.

Pois, ao mesmo tempo, ao vê-la aprontar-se, tão absorta, testando a roupa em poses e rápidos olhares, tão íntima do espelho, ele sente um azedume que lhe morde as vísceras e lhe alcança a boca.

Carlos observa Alessandra. Um olho são, o outro, não. Carlos sente que esse corpo seu o abandona. (Sente apenas - sem entender como um outro corpo pode ser tão seu a ponto de lhe fazer falta)

Alessandra está se vestindo para trabalhar.

Há algum tempo, o olhar de Carlos lhe inquieta a pele feito um presságio ou asa de anjo mau.

Sob a lupa desse olhar, ela sente seus movimentos perderem a naturalidade, sente que eles se sucedem com a eficiência mecânica de quem conhece o seu ofício. Sabe que não há diferença visível entre um e outro modo. Apenas falta a um a felicidade implícita no outro. Àquela distância, presume, Carlos não há de perceber a infelicidade, mas ela está lá quando finalmente feliz Alessandra se decide pelo vestido branco.

(Feliz/infeliz - feliz/infeliz - acendendo e apagando - como a lâmpada do quarto - era assim que ela se sentia cada vez mais - como se sua vida - isto que se repete - fosse o lugar - o quarto - onde aquilo - a felicidade - se dá - luminosa - ou não se dá - obscura)

"O que fazer com esse homem?", ela fingia não pensar quando de relance os olhos dos dois cruzavam no espelho e se desviavam feito moscas velozes se debatendo contra o vidro.

E então a imagem meio distorcida do espelho era, sim, a verdadeira imagem do mundo, do seu mundo, espelho de bruxa onde era Cinderela com seu vestido branco de alcinhas.

E vê-la linda já não era para Carlos causa de júbilo, mas de um pesar de lhe tirar o fôlego, o rancor sempre redobrado por reconhecer nisto uma fraqueza. Foi nessa hora que... "Não é mais pra mim que você se veste!" - a interrrogação que antes se retorcia por dentro dele se ergueu de súbito na muda exclamação que lhe explodiu no peito.

Alessandra parece tê-lo percebido ao admirar-se pronta e vê-lo olhando-a com esses olhos, pois virou-se de imediato, assustada com a dor que vislumbrara e já também lhe começava a doer. Foi nessa hora que...

"Tchau", ela disse com o melhor sorriso que pôde.

Carlos quis se mover, agarrá-la, despi-la, mas tudo que conseguiu foi retribuir com sua boca seca o beijo de despedida.