8 de março de 2004
Dicionários

No principio, quando Deus resolveu abrir o Verbo, foi de palavra em palavra que em seis dias Ele fez o Mundo. Mas, em seguida, do papo de Eva e a serpente até a fabricação das línguas na Torre de Babel, a palavra selou seu destino, que se resume no tom desdenhoso e amargo do comentário de Hamlet: "Palavras, palavras, palavras...".
De fato, para algo que começou a carreira com o status de condição e fórmula do mundo, a palavra acabar prisioneira de tanta controvérsia é uma prova de decadência difícil de refutar.

Borges tem um conto que ilustra bem o processo. Fala de uma civilização que ao desenvolver obsessivamente a cartografia acaba por fazer coincidir o mapa do país com o próprio território, inviabilizando tanto o país como a arte cartográfica. Talvez seja a isto, a esta passagem da palavra de invocação a véu do mundo, que Wittgenstein se refere quando fala em "enfeitiçamento da linguagem".

Nessa confusão babélica em que as palavras podem ser tanto caminho quanto abismo, os dicionários tornam-se leitura obrigatória, isto é, um lugar comum do qual não é seguro se afastar. Há quem chegue a considerá-los a única leitura "madura", à exceção dos clássicos. Um exagero, claro. Mas não há como negar que dicionários são sempre úteis - seja para esclarecer, seja para confundir, seja simplesmente para divertir.

É no primeiro caso que se inclui "Por dentro das palavras da nossa língua portuguesa", de Domício Proença Filho. Lá se esclarecem muitas dessas pequenas, intermitentes e insolúveis dúvidas que assaltam os que escrevem diariamente e que parecem escapar a toda tentativa de memorização: beneficência ou beneficiência? Bicarbonato ou bicabornato? Cabeleireiro ou cabelereiro? Bugigangas ou bugingangas? Cataclismo ou cataclisma? Aforismo ou aforisma? Disenteria ou desinteria? E por aí vai...

Já "A casa da mãe Joana 2", de Reinaldo Pimenta está entre esses livros que mais diverte do que instrui, o que não lhe tira o mérito, ao contrário, acrescenta-lhe o brilho extra do supérfluo. No rastro do sucesso do primeiro livro, Pimenta soube manter o charme das definições engraçadas de termos e expressões cotidianas que raramente nos perguntamos de onde vêm. Um bom exemplo é a expressão "à beça", que abre o livro.

"À beça" é um legado de Rodrigues Alves, presidente do Brasil de 1902 a 1906. Um certo Gumercindo Bessa havia polemizado com Rui Barbosa sobre a Questão Acreana e apresentara uma lista infindável de argumentos. Venceu literalmente pelo cansaço. Rodrigues Alves, vendo-se pressionado por um correligionário que usava do mesmo artifício para defender um pedido, mandou na lata: "O senhor tem argumentos à Bessa". Estava criada a expressão, talvez a única com chancela presidencial. O mistério é como passou-se dos ss para o ç.

Finalmente, o Dicionário Filosófico, de André Comte-Sponville, está aí, como diria o Chacrinha, não para explicar, mas para confundir - e isto não é uma crítica, como poderia concluir o leitor apressado, mas uma exaltação. Dicionário de filosofia que se preze é sempre um diálogo entre o presente e a tradição - porque talvez não haja outro campo onde as palavras mudem mais de significado com o tempo do que a filosofia. Como o modelo de Sponville é Voltaire, esse diálogo se dá com elegância e ironia. Enfim, uma delícia para quem gosta de filosofia.