5 de abril de 2004
Morrer rejuvenesce

Revisando textos antigos para expô-los no Café Impresso (meu site na Internet), reencontrei uma novela policial cujo título me agrada muito: "Morrer rejuvenesce". A trama gira em torno da morte por overdose de uma prostituta em um hotel de luxo do Rio. O protagonista é um jornalista que resolve investigar o caso por conta própria e acaba descobrindo que nada é como parecia ser... Eis um trecho da novela:

"Voltei para casa, tomei banho e fiquei fazendo hora - ainda era cedo para sair e uma preguiça me invadira o corpo. Fui fumar um cigarro na janela da sala.

"So what"? O trompete de Miles lançava no ar a pergunta, a única de fato relevante - sim: E daí? Qual, afinal, o sentido disto tudo? Olhando daqui, do oitavo andar deste prédio defronte a outros tantos prédios igualmente imóveis em sua condição de coisa morta, janelas empilhadas sobre janelas, iguais e vazias, pulsando juntas em um ritmo hipnótico a mesma luz colorida das telas de TV sintonizadas todas em um único canal onde a esta hora se desenrola a trama de umas vidas fictícias e previsíveis e, por isso mesmo, tranqüilizadoras, pois tudo como sempre acabará com a premiação do bem e a punição do mal, com tudo finalmente no lugar devido e esperado, para que enfim aqueles que assistem possam continuar acreditando, para que a eles também não ocorra perguntar "e daí?" - É nesta hora que eu entendo o suicídio como uma forma de lucidez encurralada, eu entendo o suicídio como a tentativa extrema de um salto para a vida...

E quando digo isso, não sinto em mim o menor traço de melancolia ou autopiedade. Horas antes, eu vira o corpo de uma mulher bonita abandonado em uma das tantas gavetas frigoríficas do necrotério - rígido e pálido, morto: há quanto tempo aquela mulher brincava com a morte, aumentando um pouco mais a cada vez a dose que injetava nas veias como uma fórmula de evasão, de esquecimento da vida que acabara por tornar-se a sua e que, em algum momento, lhe parecera como a melhor saída, a mais eficaz, a que a conduziria, por uma espécie de secreto e milagroso atalho, a uma condição nova e distinta daquela a que desde sempre parecera condenada? Todos, um dia, sentimos brilhar nos lábios o sorriso triunfante de Édipo ao cruzar os portais de Tebas, aclamado rei pela multidão: todos, um dia, acreditamos ter finalmente, de algum modo, escapado à íntima miséria que nos consome ao preço do seu silêncio - "Dá-me todo dia um tanto da tua alma que eu me manterei calado", nos sussurra o verme que confundimos com o Destino... E é exatamente no dia em que pensamos vencê-lo que selamos nossa derrota definitiva...

Quantas noites tenho passado nesta janela apenas vendo irem se apagando as luzes uma a uma até que só reste a minha e mais uma ou outra acesa, meus companheiros de insônia, amantes da vida noturna, nós, os que só têm olhos para a noite, os afilhados da lua... ? Pois é nessa hora que, em geral, escrevo - quando me calha de escrever - o livro, O Livro - que eu dissera a Paulo que escreveria quando ele me perguntou o que faria agora que estou desempregado, finalmente livre do cotidiano massacrante e, ao mesmo tempo, superficial do jornalismo diário. Por quanto tempo? Enquanto o dinheiro der. E, até lá, quem sabe, estará pronto O Livro - o nome que eu dou ao meu desvio milagroso, passagem secreta para o novo mundo... Eu ria - o uísque duplo que eu mecanicamente me servira enquanto pensava essas coisas começava a fazer efeito..."