26 de abril de 2004
Reality show

Nós que não somos ninguém vamos aprendendo que o poder é a arte de morder e soprar. Arte de insetos repugnantes. Arte. Um exemplo de como a coisa funciona: nos mostram pequenos trechos de fitas - gravadas como, por quem, onde? Não nos dizem. Pouco importa - a máquina de triturar reputações já está em andamento e o herói de ontem é o vilão de hoje. Fitas - de vídeo, de áudio, de tv, de câmeras ocultas, em cor ou p&b. Apenas trechos - cuidadosamente escolhidos. Uns poucos trechos, repetidos à exaustão. A fita inteira ninguém vê. Só trechos. É o bastante para nós, que não somos ninguém e estamos aqui apenas para acreditar. Esse é o nosso papel: acreditar. Todos têm um papel, todos são atores.

Nós que não somos ninguém fazemos o papel principal: nós pagamos pelo espetáculo. Talvez por isso nosso papel seja acreditar que é tudo verdade; que existe um mocinho e um bandido; que tudo vai acabar bem. Nós pagamos para ser platéia e figuração. Claque. Somos os idiotas que aplaudem ou vaiam segundo os estímulos de uma luz que se acende bem em frente aos nossos olhos: verde, aplausos; vermelha, vaias; amarelo, silêncio. Plim-plim. É emocionante.

Agora, nos próximos meses, começa mais uma edição do reality show "A corrida dos insetos repugnantes", também chamado de "A eleição". Desta vez, "A corrida dos insetos repugnantes" será em âmbito municipal.

O jogo funciona assim: a platéia (que somos nós, os idiotas que não são ninguém) ficará confinada cinco meses em sua própria cidade nas condições da última pesquisa de qualidade de vida do IBGE e terá de escolher entre 65 mil insetos repugnantes os poucos felizardos que serão lançados pelos próximos quatro anos em uma vida hedonista e paradisíaca sem o menor merecimento - esse, aliás, o grande barato do jogo, a falta de mérito dos candidatos.

Sim, desta vez serão 65 mil insetos, porque basta comprar a revista "Eu sou membro do Partido X", preencher um cupom e concorrer. As inscrições já estão encerradas e foram, como se vê, um sucesso: da última vez, houve apenas três mil candidatos - agora, repito, serão 65 mil. Isto aqui no Rio. Mas, certamente nos outros municípios pelo Brasil afora, a proporção entre eleitores e candidatos deve ser semelhante. Afinal, o desemprego está aí mesmo e, como diz o último vencedor de "A corrida de insetos repugnantes" edição nacional ou "A grande corrida" (como é mesmo o nome dele? Bambã?): "A gente precisa defender algum, companheiro."

E é impressionante como a vida das pessoas muda depois que elas entram para "A corrida dos insetos repugnantes". Não são só o salário milionário e as mordomias. São as viagens, o assédio permanente, a babação geral. A vida muda. No caso do Bambã, nem foi só a vida que mudou: ele próprio mudou. O cara é outro, inteiramente outro, o oposto daquele que nós, os idiotas da platéia, escolhemos.

É como se a alma do cara tivesse passado por um alisamento japonês, colocado lentes de contatos verdes e posto uns peitos de silicone. Um sucesso. Um sucesso, sem dúvida - que o digam os banqueiros internacionais que fizeram do Bambã o melhor negócio do século 21 até agora. Disparado. Mas o Bambã que abra o olho: a banqueirada já "realizou os lucros" e, aqui na platéia, já acenderam a luz amarela...