10 de maio de 2004
Santa idiotia

Laura me manda um texto de Cortázar. Laura é argentina, mora em Buenos Aires e fala e escreve o português com perfeição. Laura descobriu minhas crônicas na internet e nos tornamos amigos de nos falarmos todos os dias - falar desse modo quase telepático próprio da Rede, que combina o imediato do telefone com o silencioso das cartas, espécie de escrita espontânea para as massas.

Laura trabalha o tempo todo conectada e eu também. Somos, de certo modo, colegas de trabalho, ela nas traduções que faz, eu às voltas com crônicas e edições. Ficamos ali, fazendo companhia um ao outro, trocando de vez em quando uma palavra, um comentário - ou parando juntos para um café diante do monitor.
No texto que Laura me enviou, extraído de "A volta ao dia em oitenta mundos", de 1967, Cortázar fala de si como um idiota - mas de um modo que imediatamente associei ao "pobre de espírito" que verá a Deus como prometeu Jesus - e que, como o demonstra Cortázar, já o vê em cada coisa viva.

"Ahora que lo pienso la idiotez debe ser eso: poder entusiasmarse todo el tiempo por cualquier cosa que a uno le guste, sin que un dibujito en una pared tenga que verse menoscabado por el recuerdo de los frescos de Giotto en Padua. La idiotez debe ser una especie de presencia y recomienzo constante: ahora me gusta esta piedrita amarilla, ahora me gusta "L'année dernière à Marienbad", ahora me gustas tú, ratita, ahora me gusta esa increíble locomotora bufando en la Gare de Lyon, ahora me gusta ese cartel arrancado y sucio."

Para mim, esse é exatamente o sentido da expressão "amar o próximo": amar o que está perto, ao alcance das mãos e dos olhos. Único caminho para se amar sempre, tudo, indiscriminadamente - que é a forma genuína de amor.
"Pobreza de espírito" que ao invés de julgar, quer compreender - e adere a tudo, enxergando beleza em tudo - ou melhor, buscando beleza em tudo. Porque sempre há.

"Tudo é bom", já dizia Glauber - de quem, aliás, é possível baixar pela internet o genial curta "Di", uma celebração da vida e obra do pintor Emiliano Di Cavalcanti - e que está proibido de ser exibido no Brasil por obra e graça da Justiça e da família do pintor, chocada com Glauber ter transformado o velório e o enterro numa festa surrealista bem ao gosto de Di.(O endereço para baixar o curta é: www.dicavalcantidiglauber.us)

"Filmar meu amigo Di morto é um ato de humor modernista-surrealista que se permite entre artistas renascentes: Fênix/Di nunca morreu. No caso o filme é uma celebração que liberta o morto de sua hipócrita-trágica condição. A Festa, o Quarup - a ressurreição que transcende a burocracia do cemitério. Por que enterrar as pessoas com lágrimas e flores comerciais?" - escreveu Glauber sobre o filme.

Pois bem, impregnado de Glauber e Cortázar, eis que entro no ônibus e ouço o som sempre comovente de uma sanfona. Procuro e encontro um senhor negro sentado quase no meio do ônibus. Olhando seu rosto, a impressão que se tem é de que ele fabrica uma a uma as notas que tira do instrumento - e nunca mais as repetirá, tão grudadas elas parecem ao instante. Sua expressão é a do idiota: ela mal fala, nada pede e responde ao dinheiro que um ou outro lhe estende indeciso com acenos de cabeça, sorrisos vagos e um olhar de santo que mistura gratidão e êxtase.
Eu peço "Fellini" e imediatamente ele emenda o célebre tema de "Amarcord" que acende em todos um vago e intenso sentimento de nostalgia. "Asa Branca", diz o cara ao lado dele, e de novo ele passa num volteio de um gênero a outro, fazendo agora dançar os corações.

Quando fui saltar, uma senhora sentada ao lado da porta me olhou com os olhos úmidos e traduziu o que naquela hora era o sonho coerente de todos:"Devia ter um em cada ônibus". Devia mesmo. Ele, o sanfoneiro anônimo do 571, nos fazia vislumbrar um outro mundo, tão distante e possível, tão melhor. Obrigado, anônimo sanfoneiro do 571! Você é um artista genuíno e no baile do Juízo tocará na mesa de Glauber, Cortázar e outros grandes, para deleite dos seus iguais.