16 de agosto de 2004
Sonhos e nuvens

"Sonhei que você morava numa casa grande que fora dividida em apartamentos e quartos, você e sua mãe, e eu chegava de surpresa para visitar você. E me surpreendia com a umidade da casa e com a idéia óbvia que eu poderia estar sendo inconveniente, eu pensava, enquanto ouvia sorrindo uma vizinha sua explicar que sua mãe não estava, mas, você, ela não sabia, podia ser, por que o senhor não bate na porta? E eu sentia meu sorriso por detrás dos olhos ir se desfazendo sem que ninguém visse, mas era evidente que se tornara amarelo, sem brilho. "E se ela estiver com alguém?", eu pensava e havia muita umidade nas paredes, e a mulher insistia, e eu não tinha imaginado que você morasse num lugar assim, mais parecia uma casa de cômodos ou um desses hotéis de Santa Teresa...
E no sonho eu não chegava a ver você, você era apenas o seu nome, alguém que eu, dentro do sonho, via como os olhos da imaginação e da memória, dentro do sonho, e talvez por isso os sonhos nos enganem, talvez por isso sejam tão realistas: porque dentro do sonho também temos uma vida interior, o de dentro do de dentro, interior do interior - e o que fazia você dentro do meu cofre, pequena pérola silenciosa ?"

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Olhava para trás e via-se como o sobrevivente de uma tragédia de equívocos semânticos: por isso escrever tornara-se tão vital. Por isso esta atormentada vontade de precisão e clareza. Um mundo de palavras. Um outro mundo neste mundo.
Um sobrevivente, um náufrago - era assim que se via. Escapara do desastre para a precariedade de ser segundo regras que rejeita ou despreza. Escapara do tormento, mas não da possibilidade da dor. Ou, quando não, pior: da resignada impotência de seus dias negros.

Sentia a aproximação desses dias quando começava a ver toda esperança como uma forma de arrogância. E talvez a pior de todas, aquela que vem embalada em boa intenção, sentimento que lota os infernos, segundo dizem.

Abominava a autopiedade em que era capaz de manter-se mergulhado durante dias, um monstro anfíbio capaz de hibernar em sua própria miséria, trocando o alto das árvores pelo fundo escuro da lama.

Sua estratégia nesses dias era sempre a mesma: voltar contra o mundo a amargura que começa a tomar conta do seu coração. E pôr-se na defensiva, armado de afiada ironia e incerta disposição para a briga. Melhor do que aquela lassidão melancólica que parece ansiosa em dizer "sim, senhor" ou "sim, senhora" a todos, "desculpe" e "obrigado" a qualquer um que lhe ofereça a vaga atenção dos ouvintes modernos. Se é inevitável ser cão, que seja ao menos hidrófobo.

Sabia que estava deprimido quando sentia horror da natureza canina de sua alma sempre tão disposta a crer.

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Lá fora, o sol vacilante não é suficiente para compensar o açoite de um vento muito frio, voz das nuvens pesadas que avançam do sul.