30 de agosto de 2004
O cruel torcedor

Esporte e dor. O tema me ronda feito um cão faminto desde o começo das Olimpíadas. Em geral, nos fixamos nas imagens dos atletas em triunfo ou, quando muito, naquelas que registram seu estrepitoso fracasso, contraponto igualmente sensacionalista do sucesso. Mas quase nunca somos induzidos a pensar que esses corpos, em aparência mais do que perfeitos, acostumaram-se a uma intimidade com a dor raramente abordada ou exposta.

Levado além do limite usual do humano, o corpo do atleta é como a corda mais aguda de uma guitarra, sempre prestes a estourar ao som de uma nota mais ousada. Acostuma-se à dor, ao erro, à frustração, resignado e em silêncio. Sua solidão é extrema: longe do comum, tem mais afinidade com o adversário do que com o torcedor. Porque o torcedor é uma entidade cruel que só é capaz de compartilhar a vitória, a fria evidência dos números que espelha, no fim das contas, o mero resultado de um dia de trabalho - mas que aos olhos do público ávido de íntimas compensações, é o grande dia dos prêmios e medalhas que definirão quem será memória e quem será esquecimento.

Ao torcedor interessa pouco o exemplo de disciplina e obstinação que mesmo o último dos atletas - e talvez sobretudo este! - nos oferece. O torcedor é como o viciado que faz da droga a moeda de troca de seus afetos: só é fiel na vitória. Ou melhor, só é fiel à vitória.

Ouço calado dizerem à minha volta que Daiane "amarelou", que o Bimba "amarelou", que as meninas do vôlei "amarelaram". Eu mesmo, movido pelo que Niezstche tão bem chamou de "sentimento de rebanho", me sinto tentado a aderir à coletiva frustração que se apressa em rejeitar aqueles que, há pouco mais de uma hora, suscitavam em nós a paixão mais servil. Agora, de bom grado os condenariam ao ostracismo em alguma ilha deserta do Pacífico.

Claro, mais meia hora e só mesmo os corações mais duros e irremediavelmente perdidos não terão cedido ao perdão, prontos a torcer de novo com a mesma intensidade.
Mas até lá, arderão junto com os piores no mais amargo e injusto ressentimento. Até lá, o que não foi mais do que um mero erro que as regras do jogo converteram em pontos para o adversário, será percebido ilusoriamente como uma tragédia nacional, resultado (sempre aparece alguém para ressuscitar a velha tese) de uma mistura infeliz de raças e culturas que faz do brasileiro um condenado ao fracasso antecipado em tudo.

A límpida e rasa verdade da vida que insistimos em não ver é que, apesar de toda emoção por empréstimo que empapa esses eventos, foi só um erro, tão ínfimo e sem significado maior quanto aqueles que colecionamos a cada dia sem que se altere em nada o que essencialmente somos.

Daiane ousou, Bimba escolheu a estratégia errada, as meninas do vôlei tiveram um momento de desconcentração frente a um adversário poderoso. E foi só. Isso que chamamos de fracasso, fala muito mais de nós, do que deles. No fundo, quem sempre está à prova é a nossa generosidade - a grande derrotada dessas horas.
Nunca é demais lembrar que importa muito, sim, estar lá, entre os melhores - vitória pessoal que o atleta divide conosco, seus conterrâneos. Essa comunhão importa mais do que as medalhas - que talvez nem de ouro sejam.