22 de novembro de 2004
As Fúrias

Ela não tem mais do que 25 anos, é morena de cabelo crespo e tem tatuagens toscas e desbotadas desenhadas no corpo magro, uma no braço, outra na perna. Está grávida e empurra um imundo carrinho de bebê onde uma criança de uns três anos tenta dormir, enquanto outra, de no máximo cinco, apela às pessoas nas filas dos caixas do supermercado para que lhe paguem o pacote de macarrão que traz nas mãos. A mãe a acompanha nervosa, a certa distância. No silêncio constrangido, olhos voam como moscas velozes que não sabem onde pousar.

O que fazer? A mãe está cada vez mais impaciente com a performance da menina, que não consegue comover ninguém. A revolta que todos ruminam contra a mulher contamina a criança, claro instrumento da vagabundagem da mãe. "Por que não ligam as trompas?", sintetiza a senhora a meu lado e um coro de cabeças ao redor sinaliza sua concordância.
Eu não digo nada. Sinto a mesma raiva de todos. A indiferença da moça é ostensiva. O minucioso abandono a que se entrega é sua forma de confrontar o mundo. É evidente que ela não pode ser uma boa mãe para aquelas crianças, filhas do acaso e da pena. "Mal dá conta dos dois e já tem outro na barriga."

A mulher é uma fábrica de infelizes e querem esterilizá-la como a uma cadela doente - eis o resumo da cena. Não digo nada. Tento pensar. Talvez nosso primeiro ímpeto seja vingar aquelas crianças, punindo a mãe. Talvez seja isso que motive a idéia de mutilar a moça: um sentimento de vingança que quase todos trazemos da infância. A tensão que eletriza o ar neste momento beira a fúria e, se explodisse, as pessoas seriam capazes de matar "aquela vagabunda" a pauladas. "Esterilizar" é a forma "civilizada" que esse ódio toma.

Não sei, mas há algo de mais doente em nós que pensamos isso do que no olhar cínico daquela moça. Porque ninguém tem o direito de violar o corpo dela.

Nossas únicas propriedades legítimas neste mundo são nosso corpo e nosso silêncio, porque nem as palavras nos pertencem. Por isso, acredito que o corpo e o silêncio de cada um são invioláveis, intocáveis. Não, ninguém tem o direito de mutilar a moça - mesmo achando que ela merece.

Uma sociedade sã acolheria aquelas crianças e as educaria para que não viessem a ser como a mãe que as gerou. Quanto à mulher, por mais irrecuperável que pareça hoje, a ela se deveria dar toda nossa compaixão. Mas a verdade é que perdemos a "linguagem da compaixão". Não sabemos mais como expressá-la, como conduzi-la em nosso cotidiano. Ao menos eu não sei. Tudo que consigo é atirar aos miseráveis as moedas que me sobram - de vez em quando, e com certa impaciência.

Lembrei de uma crônica de Rubem Braga onde, para argumentar contra a proposta de um deputado de limitar a entrada de imigrantes no Brasil, o cronista citava o caso de Charles Chaplin, filho de dois atores mambembes e alcoólatras, cujo pai morreu muito cedo e a mãe simplesmente enlouqueceu. Nem lembro bem como Rubem articulava o argumento e não tenho a crônica a mão, mas vale a simples lembrança de Chaplin e de seus pais doentes. Quando idéias como a esterilização compulsória de seres humanos nos vierem à mente, que a imagem surrada de Carlitos as envolva com seu manto preto e branco de ternura - e o meu e o teu coração, leitor, acalme.