Tem gente que se ofende com a mentira. Eu mesmo... Bobagem.
Tudo é verdade. Sempre. Tudo. O problema é saber
se a verdade está nas palavras ou por detrás
delas. Se o que se diz é o que foi ou o que se gostaria
que tivesse sido. E aí, é preciso generosidade
- e coragem - para penetrar as palavras delicadamente e perceber
o quanto de dor e fraqueza existe dentro de cada mentira.
Sobretudo, é preciso ouvir. Atentamente. Sempre.
É com o ouvido que amamos.
Lembro de um poema do Mário Quintana:
Todos têm seu encanto: os santos e os corruptos.
Não há coisa na vida, inteiramente má.
Tu dizes que a verdade produz frutos...
Já viste as flores que a mentira dá?
Então, nada de imperativos morais ou minúcias
de juiz...
Mais perigosas são as certezas que construímos,
muralhas erguidas de areia.
O que sabemos, afinal - da gente mesmo, do mundo? Só
possuímos de fato este instante - e não vale
a pena jogá-lo fora em nome do passado ou do futuro.
A vida fica mais fácil assim, se entendemos que não
há mentira exatamente, mas algo que se teme dizer.
A mentira - ou o grito ou a frase áspera - esconde
um pedido desesperado de ajuda, uma condenação
prévia de si mesmo, uma descrença total nos
outros. Perdoe. Ampare. Acolha.
Ofereça seu abraço e seu silêncio - pois
já não se trata mais de palavras.
***
Eu? Eu não minto. Não que eu saiba. Isso faz
de mim o pior de todos os mentirosos. Então é,
como sempre, preciso recomeçar do zero, do ovo - e
dizer, no caso: "Eu tento não mentir". Tento
ser honesto, sincero, claro.
Mas o que dizer quando você me pergunta de mim?
Eu minto ainda mais quando falo de mim. Quando tento falar.
Você pergunta e meus olhos se apertam, minha boca se
aperta, meu coração se aperta. Não sei
o que dizer. E quando digo algo, pareço recitar uma
bula de remédio - com todas as suas indicações
e contra-indicações, com todas as suas descrições
minuciosas e obscuras, com todos os seus efeitos colaterais
assustadores e promessas de curas milagrosas. Uma bula de
remédio - com sua letrinha miúda fingindo, ao
mesmo tempo, intimidade e mistério.
Minto que não minto quando minto sobre o amor que sinto
e não sinto - mas é só porque não
sei.
Minto quando digo que não quero você. E minto
quando digo que quero você - mas é só
porque não sei.
A verdade (se é que não estou mentindo) é que é sempre amor e tudo é bom. Esse o mistério insuportável que sustenta nossa liberdade aterradora: tudo é bom; sempre é amor. E isso é tudo que eu sei dizer. Então, me ofereça seu abraço e seu silêncio - pois já não se trata mais de palavras.
***
Me sinto mal ao flagrar alguém revirando lixo quando eu passo com minhas sacolas cheias de compras. Talvez porque seja assim que me sinta às vezes: alguém que, carregado de compras, revira o lixo das calçadas.