21 de março de 2005
Verdades e mentiras

Tem gente que se ofende com a mentira. Eu mesmo... Bobagem. Tudo é verdade. Sempre. Tudo. O problema é saber se a verdade está nas palavras ou por detrás delas. Se o que se diz é o que foi ou o que se gostaria que tivesse sido. E aí, é preciso generosidade - e coragem - para penetrar as palavras delicadamente e perceber o quanto de dor e fraqueza existe dentro de cada mentira. Sobretudo, é preciso ouvir. Atentamente. Sempre.
É com o ouvido que amamos.

Lembro de um poema do Mário Quintana:

Todos têm seu encanto: os santos e os corruptos.
Não há coisa na vida, inteiramente má.
Tu dizes que a verdade produz frutos...
Já viste as flores que a mentira dá?

Então, nada de imperativos morais ou minúcias de juiz...
Mais perigosas são as certezas que construímos, muralhas erguidas de areia.
O que sabemos, afinal - da gente mesmo, do mundo? Só possuímos de fato este instante - e não vale a pena jogá-lo fora em nome do passado ou do futuro.
A vida fica mais fácil assim, se entendemos que não há mentira exatamente, mas algo que se teme dizer. A mentira - ou o grito ou a frase áspera - esconde um pedido desesperado de ajuda, uma condenação prévia de si mesmo, uma descrença total nos outros. Perdoe. Ampare. Acolha.
Ofereça seu abraço e seu silêncio - pois já não se trata mais de palavras.

***

Eu? Eu não minto. Não que eu saiba. Isso faz de mim o pior de todos os mentirosos. Então é, como sempre, preciso recomeçar do zero, do ovo - e dizer, no caso: "Eu tento não mentir". Tento ser honesto, sincero, claro.
Mas o que dizer quando você me pergunta de mim?

Eu minto ainda mais quando falo de mim. Quando tento falar. Você pergunta e meus olhos se apertam, minha boca se aperta, meu coração se aperta. Não sei o que dizer. E quando digo algo, pareço recitar uma bula de remédio - com todas as suas indicações e contra-indicações, com todas as suas descrições minuciosas e obscuras, com todos os seus efeitos colaterais assustadores e promessas de curas milagrosas. Uma bula de remédio - com sua letrinha miúda fingindo, ao mesmo tempo, intimidade e mistério.
Minto que não minto quando minto sobre o amor que sinto e não sinto - mas é só porque não sei.
Minto quando digo que não quero você. E minto quando digo que quero você - mas é só porque não sei.

A verdade (se é que não estou mentindo) é que é sempre amor e tudo é bom. Esse o mistério insuportável que sustenta nossa liberdade aterradora: tudo é bom; sempre é amor. E isso é tudo que eu sei dizer. Então, me ofereça seu abraço e seu silêncio - pois já não se trata mais de palavras.

***

Me sinto mal ao flagrar alguém revirando lixo quando eu passo com minhas sacolas cheias de compras. Talvez porque seja assim que me sinta às vezes: alguém que, carregado de compras, revira o lixo das calçadas.