9 de maio de 2005
Esquerdofrênicos e direitopatas

A vida intelectual e política brasileira é quase inteiramente dominada por duas correntes: os esquerdofrênicos e os direitopatas. A única característica notável das duas correntes é defenderem exatamente o contrário do que a outra prega.

Então se os esquerdofrênicos desejam a legalização do aborto, da união civil dos homossexuais e do consumo de drogas, os direitopatas são contra. Por outro lado, se os direitopatas não querem o desarmamento, os esquerdofrênicos são a favor.

Aparentemente, nenhum dos dois grupos percebe que defender qualquer uma dessas propostas implica em automaticamente defender as demais. Ou seja, quem é a favor da legalização do aborto, da união civil dos homossexuais e do consumo de drogas não pode ser a favor do desarmamento. E vice-versa. Isso, claro, se o sujeito possui um mínimo de coerência e deixa-se orientar pela lógica - o que não parece ser o caso quando se trata de esquerdofrênicos e direitopatas.

Primordialmente, a lei existe para impedir que a lei natural - que é a lei do mais forte - se imponha. É importante perceber isso para que a lei do mais forte não seja substituída simplesmente pela lei da maioria.

"Mas uma democracia não se orienta pela maioria?", perguntará o leitor apressado. Sim, quando se trata de eleições. Quando se trata da elaboração de leis em um estado democrático e laico, todas elas emanam de um princípio primeiro que é a liberdade. Dizer "liberdade individual" chega a ser redundante, mas no Brasil o pleonasmo nesse caso tem o valor de ênfase. Então vale a pena repetir: numa democracia laica todas as leis visam a preservar e promover a liberdade individual - a despeito da opinião e da vontade da maioria.

É sempre bom lembrar - sobretudo quando se trata de esquerdofrênicos e direitopatas - que nada que é humano pode ser perfeito. Portanto, toda lei implica em direitos e deveres. Ou dito de um modo mais infantil, bem ao gosto de esquerdofrênicos e direitopatas: toda lei tem seu lado bom e seu lado mal e às vezes pode, sim, contrariar convicções individuais de ordem religiosa, ideológica ou de gosto.

Em resumo, um estado democrático não legisla sobre usos e costumes - salvo, claro, quando esses usos e costumes se confrontem com o princípio da liberdade individual com, por exemplo, no caso de religiões que pratiquem sacrifícios humanos.

A lei regula apenas a relação entre indivíduos, mas não pode intervir na relação do indivíduo consigo mesmo. Também não custa lembrar que não existe "lei preventiva" do tipo "o cidadão não pode fazer isto porque, se o fizer, poderia fazer aquilo": a lei se aplica sobre fatos e não sobre hipóteses. Enfim, ter uma arma ou consumir uma droga não é um crime em si mesmo, mas um direito individual.

Finalmente - e isto deveria ser escrito em letras garrafais: leis não são feitas para satisfazer a maioria ou minorias, leis não são feitas para serem gostadas. Leis emanam de princípios. Definidos os princípios, as leis são conseqüência deles e ponto final.

No caso do Brasil, escolhemos ser uma democracia laica ou não-religiosa. Isso deveria significar que o Estado interfere o menos possível na vida das pessoas, ao mesmo tempo em que deve prover os meios de lhes garantir o pleno exercício da liberdade. Na prática, o que se deveria estar fazendo era cortar as leis que flagrantemente contrariam esses princípios, e não engordando a legislação de novos absurdos.

Aborto, venda de armas, consumo de drogas, união civil de homossexuais são obviamente questões de foro íntimo, decisões pessoais - não resta, portanto, a um Estado democrático senão garanti-las.

Eu posso ser contra o aborto e a venda de armas por convicções religiosas; posso ser contra a união civil de homossexuais por mero preconceito; posso ser contra a produção, comercialização e consumo de drogas por questões de saúde. Mas nesses casos, tudo que posso oferecer ao outro é a minha palavra, a minha ajuda ou o meu desprezo - sem, no entanto, jamais lhe negar o direito de dispor do seu corpo como quiser.