24 de outubro de 2005
Assim na terra, como no céu

Todo dia amanhece domingo. Só aos poucos cada dia vai tomando sua forma: segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado. Cada dia tem seu rosto sutil, ligeiramente diferente dos outros, como uma família de irmãos muito unidos. Mas, de manhã bem cedo, todos os dias são domingo.

O quente silêncio da manhã avança devagar, meticuloso como um gato se esgueirando pelas paredes, um regozijo mais para os ouvidos do que para os olhos. Eu, se me deixo ficar um pouco ao sol, os olhos fechados ou distraídos, logo me sinto em alguma outra cidade, menor, mais calma. Vem da infância essa cidade imaginária? Sim, reside nessa estranha geografia a cidade onde todos os dias são domingo.

O cheiro primordial do pão perfuma o ar, vindo das discretas chaminés da padaria de outro Antonio Caetano que, a poucos metros de mim, pratica essa outra forma de poesia. Pois, o que seria da vida sem o consolo de um pão doce?

Do café me encarrego eu. Seu aroma é como um hino para o espírito. Só então me sinto definitivamente desperto para o cotidiano. E começo a deixar de ser domingo...

Logo esta crônica estará sendo escrita. Mas agora, o Adão que há em mim contenta-se com seu café, atento apenas às formigas. Lá vão elas, laboriosa linha pontilhada a me cortar o branco contrastante do mármore. As formigas são uma forma de silêncio. Símbolo vivo da secreta e incessante urdidura do mundo. Porque a natureza, de fato, não tem descanso.

No céu, as gaivotas passam em direção ao mar. Vão quase imóveis, as asas em vê num vôo muito exato e sem desvio pelos invisíveis caminhos do céu.
Fecho os olhos e me deixo ficar ao sol, me alimentando de uma luz que me aquece sem ferir.

Formigas, gaivotas e cronistas. Pães e palavras. De tudo um pouco se fazem o homem e o mundo.

* * *

E enquanto escrevo esta crônica, já na sexta-feira premente de horários, meu corpo pede o teu com uma urgência que desconhece calendários. Quer: único verbo que conjuga com obscena crueldade. Ou insana inocência? Nem sei...

Urge o corpo, indiferente aos anseios da alma. E são um só, os sonsos. Eu, quando cessar de ser, hei de uni-los. Eu é o que sobra, a separá-los. E vou morrendo pouco a pouco, no corpo a corpo que reclamam, sonsos, a carne e o espírito.

Corram, corram, palavrinhas, pelo branco do monitor; corram, em sua laboriosa vocação de formigas. Corram, corram, que meu corpo já desdenha do sentido, vagando muito exato pelos invisíveis caminhos do desejo, esse outro céu mais obscuro. Corram, corram, para que eu não largue esta crônica antes do fim - que é como terminam todas as histórias. Corram, corram, para que ela venha, enfim, começar uma outra história.