31 de outubro de 2005
A perfeição é a regra

Eu sou um perplexo, leitor. Alguém que, quando supera o medo que o oprime, consegue enxergar beleza e inocência em tudo. Em tudo. Nessa horas, percebo claramente que a perfeição é a regra. São só a nossa desatenção e a nossa pressa que não nos deixam ver, viciados que somos em frustração. Sim, um vício. A frustração é um vício. A frustração e suas venenosas compensações: é disso que morremos. E assim, fechados nesse íntimo cubículo, não vemos. Não vemos o jardim e o sol lá fora.

No fundo, é medo. Não creia, leitor, em quem diz que não tem medo de nada. Não que não haja quem não tenha mesmo medo de nada. Mas esses não falam. Sabem quanto custa o destemor e, por prudência, se calam. O medo sempre ronda, como uma matilha de cães ferozes e covardes.

Mas se o mantenho longe, o encantamento de tudo se revela. O mistério pulsa no cerne de cada coisa à minha volta e a beleza é tanta que pode mesmo nos enlouquecer. Salva-nos a inocência; essa bruta e às vezes maligna inocência. "Perdoai-os, eles não sabem o que fazem", disse Jesus, me lembro agora. É, não sabemos mesmo.

Enlouqueceríamos se soubéssemos? Acho que sim. Às vezes, passando, como há pouco, pelas ruas com olhos destemidos e atentos, encaro um desses mansos mendigos loucos que se encolhem nos cantos das marquises para escrever e vejo brilhar de volta nos olhos deles o recado: "Eu sei". Sim, mas não é esse o meu caminho - é tudo que me ocorre pensar.

Singular. A singularidade aterradora de cada ser ou coisa. Passar pela vida sem perceber essa verdade tão simples. Simples, singela e aterradora. Passar pela vida sem ver.

* * *

"Que é daquela nossa verdade - o sonho à janela da infância?", me pergunta Fernando Pessoa, no livro aberto ao acaso. "Pecado original", chama-se o poema.
Perplexo, não direi mais nada, leitor. Deixo o verso com ares de epígrafe no fim da crônica que assim se finge sem pé nem cabeça.