28 de novembro de 2005
O gato Champanhe

Era um gato e se chamava Champanhe. Talvez por conta da cor, aquele amarelo pardo próprio dos gatos. Mas a verdade é que o nome combinava com seus modos aristocráticos, que o mantinham sempre distante e à parte. Champanhe, por exemplo, só dormia no alto da TV ou de algum móvel, jamais no chão ou ao nível do chão. Passava horas na janela contemplando o céu e nunca atendia aos chamados de Mazé, sua dona.

Seu irmão, Nick, era exatamente o oposto: bonachão e afetuoso, não recusava um colo e estava sempre presente, da maneira discreta e silenciosa dos gatos. Era a primeira vez que Mazé tinha gatos e a diferença de caráter entre os dois irmãos é motivo até hoje de especulações sobre a natureza das almas. Se ser homem é já ter sido tudo, não custa imaginar que Champanhe fosse já uma alma muito próxima a experimentar ser gente.

Ou, melhor ainda: fosse uma alma que, por alguma razão insondável, tivesse decidido voltar a ser gato. Afinal, não se trata de uma encarnação assim tão longa e, dependendo do lugar onde se escolha nascer, a vida pode ser muito confortável, propícia a longas meditações na janela, assistindo ao vôo das nuvens e dos pássaros e ao desenrolar do drama humano nas outras tantas janelas vizinhas. Quantos delicados enredos, quantas tragédias e comédias mudas e anônimas se desfiaram ante o olhar vagabundo e atento de Champanhe!

Aliás, se o leitor é daqueles que flerta com a hipótese da reencarnação, permita-me apresentar uma variante que a enriquece do fantástico que o uso de muito anos lhe tratou de atenuar: imagine o leitor que as encarnações, em vez de sucessivas, sejam simultâneas e se dêem ao mesmo tempo em planos temporais diversos. Não custará imaginar então que Champanhe, em sua curiosa contemplação fenestral, seja a alma felina de Shakespeare a escrever, naquele mesmo instante, Macbeth ou Hamlet.

Pois talvez seja preciso ser gato, cavalo ou cão para melhor apreender a natureza dos homens. Tão egoístas somos que mal prestamos atenção uns nos outros. Já os bichos, até por prudência, não podem descuidar de nós.

E não é que Champanhe um dia descuidou-se e caiu da janela? Oitavo andar. Mas ainda era jovem e, tirando o susto, nada lhe aconteceu, talvez por conta de seu aprendizado de nuvens e pássaros. Susto duplo, porque Mazé, que até ali se fizera de difícil em retaliação ao comportamento de Champanhe, se desfez em lágrimas e carinhos só de imaginar a hipótese de perdê-lo.

Daquele dia em diante, ainda que Champanhe continuasse fundamentalmente o mesmo, ele e Mazé estabeleceram um pacto de afeto e respeito: enfim, agora sabiam que se amavam e esse saber os tranqüilizava.

Mas, no fundo, faltava o gesto que humanizasse o gato aos olhos de Mazé, ou melhor, o gesto que exibisse em plenitude a sensível inteligência que existe em tudo que é vivo. E veio o gesto.

Um dia, por razões que a sabedoria apagou da memória, Mazé chegou muito triste em casa, o coração desfeito como um biscoito esquecido no bolso. Correu para o quarto, debruçou-se sobre a mesa, o rosto escondido entre os braços e chorou como uma criança.

Foi então que sentiu um toque delicado e insistente em seu braço. Ergueu a cabeça e lá estava Champanhe a encarando. Um sorriso ainda não se desenhara em seu rosto quando o gato lambeu as lágrimas que lhe corriam num fio único.

Não direi mais nada. A não ser que a alegria imediatamente se instalou de novo no coração de Mazé e tudo terminou num longo abraço que, de algum modo, perdura, inscrito na alma, à flor da pele, para sempre.