9 de janeiro de 2006
Abacaxis

Frente fria. Dias seguidos de muita chuva e então a vida parece um domingo interminável. O domingo que antecedeu a Criação. Porque se Deus descansou no sétimo dia, isso significa que ele começou o mundo numa segunda-feira. Então deve ter havido um domingo, o dia zero, em que Ele disse para si mesmo: "Amanhã eu começo o mundo". E esse domingo é a eternidade tangível. A nossa eternidade, aquela que alcançamos. A precária eternidade de um mundo que aguarda ser criado. E é essa a eternidade que se instala nesses dias sem identidade, cinzas e iguais, dias que já nascem moribundos. Olho as coisas lá fora e tudo parece ter perdido o nome. É com se Deus se ausentasse e o que lá fora persiste fosse um projeto ainda sem vida.

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Vistos do alto, os guarda-chuvas são como estrelas negras rodopiando no manso caos, úmido e cinzento.

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E se estes dias forem o início de um lento e persistente dilúvio, não de águas que sobem repentinas, violentas e catastróficas, mas dessa chuvinha fina, que vai se infiltrando insidiosa, pelas paredes das casas e na alma da gente, nos roubando a cor e a alegria, quase sem que saibamos? E então, num dia qualquer, nos daríamos conta que já nem saímos mais de casa, confinados pela chuva e a tristeza, restritos a uma dieta de água e vagas reminiscências. E quando, já sem nenhum interesse, olhássemos pela janela, constataríamos sem espanto já não haver mais paisagem.

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Crônica sombria esta, que nem sabe de onde vem, se da tarde chuvosa lá fora ou se de algum ermo recanto meu. Não importa. É preciso dar sentido à vida, a esta tarde, renomear este mundo sem cor. Já não mais com os olhos inocentes de Adão recém-criado, mas do simples mortal que, consciente da Queda, quer recuperar exatamente essa inocência do olhar que talvez a palavra preserve e restitua.

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Hora de gritar "Abacaxis!", essa palavra mágica, ácida até quando é doce, capaz de deixar sua marca nas bocas menos sensíveis. Hora de encarar um abacaxi com o espanto primordial do primeiro europeu e passar longas horas conjecturando se o abacaxi não será alguma espécie híbrida de tatu vegetal ou algo assim. Hora de ser de novo Pero Vaz de Caminha a se indagar se não terá aportado no Paraíso. Hora de ser "sim" de corpo inteiro e se banhar nessa chuva mínima, sentindo-a já não como ameaça, mas como o terno abraço de mãe reconciliada.