6 de fevereiro de 2006
Realidade virtual

Acho que a gente ainda não se apercebeu do que significa o virtual ter se incorporado ao real. Virtual era, até muito pouco tempo atrás, sinônimo de potencial, de possível, de latente, de ainda não-manifesto, de imaterial. Algo cuja substancialidade - ou mesmo existência - era motivo de controvérsia. Pois onde estaria - ou o que seria - o que ainda não é real - no sentido de material, de presente, de sensível?

Agora o virtual tornou-se uma dimensão do real. Tão comum e cotidiana que mal pensamos nela. Ou seja, o real se ampliou. Isso significa que ao real se incorporaram características que antes eram próprias do virtual. Atributos abstratos demais, por sinal, e portanto, controversos: simultaneidade, ubiqüidade, imaterialidade. A realidade, enfim, tornou-se maior, se expandiu de fato, alcançando domínios que até então eram exclusivos de deuses e anjos.

Tomemos o exemplo da versão digital de um livro de oitocentas páginas. Materialmente, ele ocupa um bom espaço na estante. É pesado. Difícil de transportar e caro até mesmo para copiar. Mas virtualmente, dependendo do formato, ele não terá mais do que algumas centenas de kilobytes, o que fará dele um pontinho invisível no disco rígido do mais simples dos computadores - que hoje já saem da loja com 40 gigabytes de memória, no mínimo!

Só para o leitor ter uma idéia, se cada livro tivesse 500 megabytes, nesse disco rígido caberiam 80 mil livros! Imagino que todo o conhecimento humano relevante - aquele necessário para se reconstruir minuciosamente toda a nossa cultura - deve ocupar até menos do que isso...

Mas esse pontinho invisível, se estiver em um disco rígido conectado a um servidor de Internet, estará simultaneamente acessível a todos os micros conectados do mundo. Paradoxalmente, ele é, ao mesmo tempo, quase nada e quase onipresente! E dele podem ser feitas literalmente infinitas duplicações - porque nem cópias são, mas clones exatos e perfeitos.

Então repito que, de cara, o que mais me chama atenção é que esses atributos tão abstratos, tão próprios de outras esferas, tenham invadido o cotidiano: simultaneidade, imaterialidade, ubiqüidade - por hora, ainda mediados pelo "quase". Mas até quando? E acrescento uma pergunta inquietante: que valor tem esse livro quase imaterial e ubíquo? Falo de dinheiro mesmo...

Vou dizer uma coisa que talvez soe orginal: o mundo virtual, hoje tão caro e moderno, será o mundo dos pobres, dos despossuídos, dos desempregados crônicos do século 21. A virtualidade é para os pobres, o correspondente exato do dinheiro inexistente ou desvalorizado.

E não são só as "coisas" que desaparecem. Acho que a própria idéia de "eu" se esfacelou em pedaços que hoje encontram na Internet um campo fértil para vicejar. Sinto mesmo que há uma certa nostalgia do, chamemos assim, "eu clássico": a santíssima trindade freudiana, ínfima e mundana, se debate para manter sua identidade neurótica.

Porque o mundo digital é, por definição, descontínuo. Como construir uma identidade assim, ao menos no sentido clássico de uma sucessão no tempo? As "personas internas" hoje parecem se sobrepor, simultâneas, se acomodando do modo ambíguo próprio das camadas, uma sobre as outras - juntas, mas desconexas, aparecendo e desaparecendo segundo a lógica ambígua das pulsões.

Por outro lado, privacidade e transparência vivem numa tensão permanente que politicamente logo irá se traduzir num embate feroz entre os cidadãos/contribuintes e o Estado. Nesse sentido, vejo uma tendência irrefreável a nos tornamos mais tolerantes (eu diria mesmo: promíscuos) e anárquicos. Cada vez mais singulares e múltiplos, no sentido privado, e globalizados no sentido público. O futuro me parece anarcocapitalista. Aonde o futuro chegar. E quando chegar.