3 de abril de 2006
Anjos interinos

Chove. A cidade precisava. Os homens, os animais, as plantas. Mesmo esses estranhos seres feitos de concreto e vidro, os prédios, precisavam. Todos precisávamos. Somos todos feitos de água. Pois, quem já viu como, da mistura com a água, o pó de cimento vai se avolumando numa massa elástica, sabe: até os prédios são feitos de água.

E, no entanto, somos tão secos, tão duros, tão fechados em nós mesmos, como se de comum tivéssemos apenas a distância que nos separa.

A chuva, violenta e repentina, nos pegou a todos desprevenidos. Segue-se o natural corre-corre em busca de abrigo e eu, porque não tenho pressa, me refugio sob o toldo de um bar que avança ilicitamente sobre a calçada. Escolho uma mesa e peço um café. Enquanto espero, estudo sem convicção o cardápio e não encontro nada que me emocione: literatura insípida e sem imaginação. O garçom que me traz o café é a cara do cardápio. Talvez um banho de chuva que lhe empapasse a alma pudesse restituir sua aquosa humanidade, sua imensa e minuciosa comunhão com tudo.

Mas, não. Ele aferra-se a essa cara de filé com fritas e finge não ver meu sorriso e responde com um mero aceno de cabeça ao meu "obrigado" quando me serve o café. Talvez ache pouco servir um café. Talvez ache injusta a vida que lhe cabe. Quem não, às vezes?

Abandono o garçom à sua vocação de terra desolada, e me deixo ficar surpreendido pelo cheiro mineral de chão molhado que sobe do asfalto e das pedras da calçada. Um cheiro bruto, acre, vital - marca da íntima e secreta renovação promovida pela chuva. Um júbilo quase irracional toma posse de mim, uma fé intensa na vida: "Tudo é bom", sinto - e o som furioso da chuva se confunde com a efervescência do meu coração a mil.

Pela calçada quase vazia, duas meninas avançam agarradas a um precário guarda-chuva. Vêm muito juntas, abraçadas e riem. Riem da dança desconexa que fazem para se desviar das poças e riem ainda mais da inutilidade do seu esforço. Gozam satisfeitas da amizade que as une assim tão próximas, tão coladas uma a outra, sem nenhum toque de malícia. Vão assim juntinhas com a mesma naturalidade das nuvens que se juntam para fazer chover.

Passam bem perto de mim, anjos interinos a espalhar felicidade - entre aqueles que têm olhos para vê-las.