17 de abril de 2006
Carta de um filho ao seu pai morto

Meu querido e saudoso pai:

Eu não sabia: há lágrimas que libertam. Uma emoção há tanto tempo congelada se dissolve e escoa vindo do sem fundo de mim para ganhar a luz. E me sabiam bem essas lágrimas, quentes e salgadas, deslizando dos olhos até a boca. Agora sei: só dando a luz a si mesmo um filho pode ser seu pai. Muito aprende um filho com seu pai, mesmo que ele esteja morto. E talvez até mais.

Pois agora nos falamos, meu pai, de alma para alma, sem a mediação das palavras. Não que a vida tenha se tornado mais fácil. Não ainda. Mais do que nunca, ela me aparece como um enigma - silencioso, fulgurante, bruto: um enigma de fogo. Mas já sei que não somos nós ardendo no centro desse enigma.

Será o amor? O abraço que você me deu na noite em que pedi para que viesse em sonho me perdoar, e as palavras que você disse lá e repetiu depois em sua carta ("Eu também preciso do seu perdão") me lançaram subitamente num cume altíssimo de onde se divisa apenas o vasto horizonte e o abismo. Só o vôo me resta - certeza destituída de asas. Ainda. Você é meu Dédalo e eu serei um Ícaro prudente, porque nossa história está agora destinada ao sucesso. Onde queremos ir é vontade de poucos. Árduo é o caminho. E solitário.

É desse sucesso que falo e não da vaidosa tagarelice do que passa por presente sem ser nada. Livre, posso dar as costas a tudo e partir. Nem as palavras serão mais necessárias. Estamos quites; estamos juntos. Nem tudo o que você me disse eu consigo enxergar. Ainda. É tão estranho estar vivo quanto deve ser estranho estar morto. Em tudo, sempre, nos aguarda o Mistério.

* * *

No dia em que recebi sua carta, me deparei, por acaso, com estes versos (que são também uma homenagem a uma amiga nossa):

"The entire world is in flames, the entire world is going up in smoke. The entire world is burning, the entire world is vibrating. But that which does not vibrate or burn, which is experienced by the noble ones, where death has no entry -- in that my mind delights."

Em português, ficaria mais ou menos assim:

"O mundo inteiro está em chamas, o mundo inteiro se esvai em fumaça. O mundo inteiro está queimando, o mundo inteiro está vibrando. Mas aquele que não vibra nem queima, aquele que só os nobres experimentam, aquele que a morte não penetra: é lá que se deleita minha alma."

Eis, de nós, um resumo.