16 de outubro de 2006
Paz

Há lá fora um silêncio de cidade pequena que convida ao sono. É feriado e dia santo: liberados estão todos os viventes para continuar na cama além da hora comum de levantar. Aproveito. Permaneço imóvel, os olhos fechados, mas cientes já de que faz sol, o sol que o corpo me reclama há dias. Mas o mesmo corpo também quer dormir. Digo para mim que posso ter os dois e então um sorriso discreto como uma lua minguante se desenha em meu rosto: feliz e luminoso, me deixo dormir.

Mas não durmo: me entrego ao devaneio e sonho acordado crônicas que jamais escreverei; revisito o passado; revejo meus mortos e os saúdo. O que fui, o que sou, quanto tempo faz que existo? E isto, existir, o que é?
Meu corpo se espalha, imenso e minucioso mapa - de mim, da história que sou e se esclarece em frases que jamais ganharão luz ou voz - mas me delicia pensá-las, intrincada lógica de sentidos e sonoridades que suscitam imagens e nelas se entrelaçam, ternamente tecidas.

* * *

E assim fui me deixando ficar e, de tudo, o que lembro vivamente ainda é que há muito não me sentia tão inteiro, uno, oceânico no silêncio do meu sonho sem sono. E a paz que me dava era também descanso para o corpo e a alma - exaustos da nobilíssima tarefa de se buscarem no trabalho, no amor, na amizade, na vida mínima e cotidiana.

Paz. A felicidade de sentir paz. Um profundo sentimento de harmonia: corpo, alma, Deus, mundo em uníssono. Era como finalmente chegar, quase sem se dar conta, ao lugar tão esperado.
Paz. Luz. Voz. Palavras parecidas que nomeiam as coisas que mais tenho procurado agora. Palavras simples, de sentido tão vasto e, ao mesmo tempo, tão preciso. Pois, como não sabê-las? Tão óbvias: paz, luz, voz. E, no entanto, o que sabemos? Eu arrisco que são formas de vibrar em perfeita consonância com tudo mais ao redor. Pois era assim que me sentia de manhã e é assim que me sinto em meus esforços de ver, ouvir e cantar.

* * *

Enfim, custei a querer levantar. Fui me deixando ficar de olhos fechados, já irremediavelmente acordado, mas tão bem em mim que me adiava sobre a cama. Agradeci a Deus a manhã e toda a vida que cabia dentro dela. Ser é muito maior do que qualquer história. Amém.