23 de outubro de 2006
Futuro promissor

Sou dessas pessoas que crê piamente que o simples fato de comprar um livro já o faz dele leitor. Diversas reputações intelectuais se construíram - e se constroem! - sobre essa presunção duvidosa (duvidosa, sim, devo admitir, mesmo a contragosto). Talvez porque vivamos num país onde a crença em poderes sobrenaturais e carismáticos é também fundamento de outras tantas reputações. É fácil perceber que as duas crenças se reforçam, pois a suposta capacidade de assimilar o conteúdo de um livro por simplesmente possuí-lo é uma variação particular da crença mais geral nos poderes ocultos e inexplicáveis de certos indivíduos.

Assim, um notório analfabeto, quando mostrado tendo ao fundo uma estante de livros ricamente encadernados, ganha aos olhos dos espectadores a aura mística do intelectual. Aura que se reforçará ainda mais se o distinto não disser coisa com coisa, o que será tomado por prova inconteste de inexpugnável sabedoria.

Não tenho certeza, mas penso ter lido em alguma orelha de livro que é a esse tipo de leitor, capaz de assimilar, por mero contato, páginas e páginas sem sequer abrir um livro, que se convencionou chamar, mui apropriadamente, de "intelectual orgânico".

É verdade que a já incipiente indústria editorial brasileira só teria a perder se, por um acaso nefasto, fosse exigido dos compradores de livros que, além de comprá-los, também os lessem.

Tal exigência seria obviamente uma injustificável violação de privacidade, visto não existir nenhum argumento lógico que permita inferir da compra, a obrigação da leitura. Em outras palavras, não existe nenhuma relação de necessidade entre comprar e ler. São atos independentes e, em certos casos, opostos. Pois, quantas histórias já não ouvimos de milionários e políticos (no Brasil, quase não mais os distinguimos) que, insatisfeitos com uma sua biografia publicada sem autorização, mandam comprar todos os exemplares com a intenção única de queimá-los?

E seria ainda pior se, além de ler, o comprador fosse também obrigado a entender o livro! Aí, sim, a ruína da indústria editorial seria definitiva.
Devo admitir que eu, se não leio tudo que compro, também não entendo tudo que leio. Ou por outra: entender, até entendo. Na verdade, eu me desentendo com certos livros.

Porque os leitores por contato em certo momento são tomados pela tentação de escrever sobre os livros que não leram. E, pior: escrevem!

Enfim, leitor, genuíno ou hipócrita, nos deparamos com a única conclusão possível: a cultura de um país em que tais crenças são tão arraigadas, está solidamente fundada na difusão sistemática da ignorância e do equívoco!
Podemos, portanto, dormir tranqüilos: a cultura no Brasil nunca esteve melhor e tem pela frente um futuro promissor.