30 de outubro de 2006
Ser verbete

Pois é, me entristece um pouco saber que logo será verão. Tenho amado esses dias timidamente nublados, de chuvinhas vacilantes, quase envergonhadas de si mesmas. Na maior parte do tempo, faz sol. Um sol cálido e aconchegante, que mais envolve do que esquenta. Saímos vestidos de sol, por assim dizer. Contamos com ele como um casaco. Ao contrário do sol do verão que nos exige nudez e sombra. Mar, também, claro. E muita água fresca. No verão a vida só é possível na praia e mesmo assim, cercada de precauções: barraca, chuveiro, protetor solar, água mineral, mate, biscoito Globo e Chicabon.

Nestes dias, em que não tenho tido tempo para caminhar de manhã cedo, fico na janela um minuto ou dois, de cara para o sol e deixo que os muitos tons de vermelho que vejo vibrar por detrás dos olhos fechados me banhem todo o corpo. Sinto esse calor ir se espalhando por cada célula, como se fosse eu próprio um discreto girassol. "Será assim que se sentem os girassóis?", me pergunto quando me ocorre pensar algo.

Discreto girassol ou futuro verbete de dicionário de literatura onde gostaria de ver constado: "Antonio Caetano: cronista carioca cuja única contribuição relevante às letras nacionais foi ter atenuado o sentido da palavra 'cálido'. Originalmente, 'cálido' significava 'quente; ardente, apaixonado'. Em suas crônicas meteorológicas, Antonio Caetano usava a palavra 'cálido' com o sentido de 'morno; aconchegante, confortável', como se a palavra fosse uma aglutinação da metáfora 'calor pálido', que vez ou outra também empregava."

Mas, nem isso. Nunca usei a expressão "calor pálido" e, ao conferir se o Houaiss concordava como o Aurélio, descubro que "cálido", pode, sim, ser sinônimo de "morno". Um calor pálido me aperta o coração: durou pouco meu sonho de ser verbete... Pouco importa. A fama é, quase sempre, filha bastarda do equívoco.

Enfim, se não inventei uma acepção nova para "cálido", fiz melhor: inventei-lhe uma falsa origem que soa verossímil. E de quebra, ainda criei essa expressão, "calor pálido", que não é de toda má. Ah! Já o coração se aquece de novo, leitor, na renovada esperança de ser verbete! Então, para me garantir a propriedade, repito: nestes dias de chuvinhas tímidas tem feito um calor pálido. Aliás, veja que graça, até rimam, palidez e timidez.

E, como disse no começo, me entristece perdê-los. Deveria mesmo confessar que ando me entristecendo à toa. Não me perguntem por quê; não saberia dizer e tristeza não é coisa que se explique - é como cavar na areia. E nem sei se tristeza é. Digamos assim: é uma tristeza cálida. Não chega a ser uma definição, mas se querem uma, permitam-me citar a autoridade de Camões:

Mas, conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal que mata e não se vê;

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei porquê.

É isso - ou quase. E passa como vem: nuvem - de chuva tímida. Tímida e cálida como essa guajira clássica de Cachao que estou ouvindo agora.