13 de novembro de 2006
O amor em toda parte

A Zona Sul do Rio é margeada por uma ciclovia a beira-mar que vai do Flamengo ao Leblon e, a certa altura, passa pelo Túnel Novo, a ligação entre Botafogo e Copacabana. São, na verdade, dois túneis lado a lado, construídos em épocas diferentes, mas exatamente iguais: largos, mal iluminados e barulhentos. Dos dois lados de cada túnel há passarelas, uma para pedestres e outra para bicicletas. As passarelas são estreitas e guarnecidas por uma pequena mureta a altura dos joelhos, encimada por grades largas, que servem de corrimão.

Nos dias de semana, o movimento de ciclistas é pequeno nos túneis, ainda mais nestas manhãs úmidas e de sol incerto. Outro dia, bem cedo, resolvi dar uma volta mais longa, até Copacabana. Gosto de olhar a praia sob o céu nublado, a sutilíssima variação de tons de cinza do céu, o mar mais encorpado, de um verde escuro e sem brilho que o torna ameaçador e soturno.

Na volta, ao entrar no túnel, como sempre meus olhos cansados sofreram com o súbito contraste, mas pude vislumbrar à contraluz um montículo de alguma coisa no chão, encostado na mureta e oculto dos carros que passavam. Restava muito pouco espaço entre o obstáculo inesperado e a parede, por isso, reduzi a marcha e apurei o olhar. Uns pedacinhos de pano esvoaçavam no alto da coisa, singelos e preguiçosos, ao sabor da brisa fria que atravessava o túnel. Não custei a perceber que era um desses edredons baratos, que um dia já fora branco e enfeitado por motivos florais, mas agora estava aos trapos, sujo e desbotado. Era óbvio também que embaixo dele estava um corpo. Ou vários. Não tive tempo de sentir medo, só um rápido aperto no coração urbano e escolado. Diminuí ainda mais a velocidade, apoiei um pé no chão e passei quase andando ao lado daquilo que só podia ser gente.

Fui silencioso e quase discreto, mas não foi por isso que eles não repararam em mim. Espremidos contra a mureta, embrulhadinhos em seu edredom florido, estavam dois amantes adolescentes. Mal lhes vi as feições, mas seus olhos e sorrisos resplandeciam na semiescuridão do túnel. Penso ter lido em seus lábios o balbuciar de palavras doces. Mas não tenho certeza, foi tudo rápido demais. Indiferentes ao barulho, à poluição e à miséria os dois se amavam, só isso é certo.

Ter merecido ver amor tão genuíno foi prêmio que agradeço a Deus agora, por escrito.

* * *

(Um parêntese, que talvez devesse estar ali, depois do segundo parágrafo: acho muito triste essa ocupação que se faz da praia, principalmente em Copacabana, com campeonatos, shows, eventos e tudo mais que dê na cabeça dessa gente que não deve ser carioca nem gostar de mar. A praia no Rio tem de ser tratada como um santuário consagrado à contemplação e à beleza, à solidão e à luxúria. Até gritar deveria ser proibido nas praias e o único som permitido seria o batuque dos atabaques dos filhos de Iemanjá, no dia 31 de dezembro - depois, claro, de abolida a vulgar e pavorosa queima de fogos).

* * *

Muita gente pediu para eu enviar a música citada na crônica passada, "Si me pudieras querer". Como citei também mais outras duas, "Romance" e "Ruby, My Dear" resolvi disponibilizá-las no meu site, o Café Impresso (www.cafeimpresso.com.br). De brinde, outro presente: "Agnus Dei", de Barber. Passem por lá e ouçam. Vale muito a pena.