4 de dezembro de 2006
Certas nuvens de Brasília

Pão doce e café no fim de tarde. Mais um dia que se encerra, dia duro, de muito calor e trabalho. As gaivotas voltam para casa, hoje obrigadas a bater suas asas pesadas, impróprias para vôos mais longos, porque o ar está parado, sem ventos para navegar. É raro vê-las concentradas no esforço de voar em vez de entregues à delícia de simplesmente planar, como às vezes nos acontece em sonho.

Vão tensas e incessantes, mais baixo do que de costume, na expectativa de que alguma corrente as resgate. Certamente chegarão exaustas e até alguma talvez se perca no caminho. Hoje o dia terá sido em vão porque ao final terão gasto mais no ir e vir que constitui sua vida do que conseguiram arrecadar em comida.

Mas a verdade é que não poderiam deixar de vir ou não seriam gaivotas. Conheço pouco da natureza, mas acredito que só em excepcionalíssimas situações os animais deixam de cumprir seus rituais diários. Porque a vida para eles recomeça do zero todos os dias. Voar para o mar em busca de peixes é a vida da gaivota. Não ir, não poder ir, seria já o prenúncio da morte. Como agora, quando os ventos cessam súbita e insistentemente, quase como se o mundo tivesse se alterado sem avisar. Como se de repente, para nós, o chão se tornasse pegajoso, misto de lama e areia.

Meu coração vai com elas, eu que sou um pouco gaivota: só faço o que sei e gosto do que faço. A língua é meu céu. E se às vezes me falta vento, bato as asas com bravura e sigo até o fim tentando entreter os olhos de quem me lê.

Uma chuva de pingos grossos e esparsos cai de repente sem que nada no céu nublado a anunciasse. É uma dessas nuvens errantes que às vezes percorrem a cidade como uma procissão lenta e chorosa.

De Brasília, guardo a memória de umas nuvens enormes e solitárias que corriam o céu imenso do planalto nas abafadíssimas tardes de verão. Pareciam dirigíveis e iam regando os lugares por onde passavam. Lembro nitidamente de ficar na janela vendo a chuva passar e ir desenhando um traço de água no chão. Chuva de uma nuvem só, lindo e inusitado espetáculo tão comum por lá, mas que aqui nunca se vê.

"Fui feliz em Brasília...", concluo enquanto vão me pingando lembranças reticentes do meu passado na paisagem ampla e seca do cerrado, cenas sempre comoventes como tudo que fica do passado, as cores vivas contrastando com o cinza deste fim de tarde meio chuvoso.

Vieram com a chuva uns ventos desencontrados que hão de animar minhas tristes gaivotas que já se perdem na distância. Outros bandos vêm vindo, planando com aquele plácido orgulho tão próprio das gaivotas quando estão felizes.